A lógica do Evangelho

Continuo neste texto a reflexão iniciada anteriormente no contexto do cap. VIII da Exortação Apostólica Pós-Sinodal Amoris Laetitia, tentando destacar algumas das grandes interpelações decorrentes do processo de discernimento a que as comunidades cristãs são convocadas no contexto de acompanhamento das chamadas situações «irregulares».

A primeira grande interpelação encontroa-a numa afirmação que me parece ser um dos pressupostos de toda a reflexão do papa Francisco ao longo deste texto: “Ninguém pode ser condenado para sempre porque esta não é a lógica do Evangelho” (nº 297). Mais claro não se pode ser.

É verdade que o texto continua afirmando que

“se alguém ostenta um pecado objetivo como se fizesse parte do ideal cristão, ou quer impor algo diferente do que a Igreja ensina, não pode pretender dar catequese ou pregar e, neste sentido , há algo que o separa da comunidade (cf. Mt 18,17). Precisa de voltar a ouvir o anúncio do Evangelho e o convite à conversão.” (nº 297)

Se quisermos ser sérios temos mesmo de citar tudo, mas julgo também que na senda dessa seriedade é necessário destacar uma hierarquia de verdades e afirmações, de tal modo que é necessário dizer que não é a primeira parte da citação que deve ser lida e compreendida a partir da segunda, mas sim o contrário, ou seja, em todo o processo de discernimento e acompanhamento é preciso nunca esquecer que ninguém pode ser condenado para sempre, porque essa não é a lógica do Evangelho.

A lógica do Evangelho é que deve presidir à elaboração das normas e não o contrário. Com isto não se pretende, de modo nenhum, diminuir o horizonte de plenitude do ideal evangélico. Acusar o texto disso é, no meu entender, não saber lê-lo devidamente. Várias vezes o Papa reafirma e sublinha a totalidade dessa proposta, como claramente se pode constatar no que é afirmado no nº 307:

“Para evitar, qualquer interpretação tendenciosa, lembro que, de modo algum, deve a Igreja renunciar a propor o ideal pleno do matrimónio, o projeto de Deus em toda a sua grandeza […]. A compreensão pelas situações excecionais não implica jamais esconder a luz do ideal mais pleno, nem propor menos de quanto Jesus oferece ao ser humano. […].”

Mas é precisamente esta lógica de totalidade e plenitude do Evangelho que leva o Papa a retomar o que já tinha dito na Exortação Evangelii Gaudium e que de novo agora repete:

“[…] «sem diminuir o valor do ideal evangélico, é preciso acompanhar, com misericórdia e paciência as possíveis etapas de crescimento das pessoas, que se vão construindo dia após dia», dando lugar à «misericórdia do Senhor que nos incentiva a praticar o bem possível». Compreendo aqueles que preferem uma pastoral mais rígida, que não dê lugar a confusão alguma; mas creio sinceramente que Jesus Cristo quer uma Igreja atenta ao bem que o Espírito derrama no meio da fragilidade […].” (308)

E para que não fiquem dúvidas acerca de onde reside a centralidade do Evangelho, um pouco mais à frente volta a sublinhar,

“[…] embora seja verdade que é preciso ter cuidado com a integralidade da doutrina moral da Igreja, todavia sempre se deve pôr um cuidado especial em evidenciar e encorajar os valores mais altos e centrais do Evangelho, particularmente o primado da caridade como resposta à iniciativa gratuita do amor de Deus. Às vezes custa-nos muito dar lugar, na pastoral, ao amor incondicional de Deus. Pomos tantas condições à misericórdia que esvaziamos de sentido concreto e real significado, e esta é a pior maneira de diluir o Evangelho.” (311)

Já mesmo a finalizar o capítulo, o Papa tira as consequências desta centralidade evangélica, destacando que essa deve ser também a lógica que deve prevalecer na Igreja:

“Isto fornece-nos um quadro e um clima que nos impedem de desenvolver uma moral fria de escritório, quando nos ocupamos dos temas mais delicados, situando-nos, antes, no contexto de um discernimento pastoral cheio de amor misericordioso, que sempre se inclina para compreender, perdoar, acompanhar, esperar e sobretudo integrar. Esta é a lógica que deve prevalecer na Igreja.” (312).

Acompanhar, discernir e integrar a fragilidade. O Capitulo VIII da Amoris Laetitia na mira da análise do teólogo Juan Ambrosio. Pág. 8

Texto: Juan Ambrosio – Teólogo – edição outubro do Jornal da Família
                                   juanamb@fit.lisboa.ucp.pt

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