Queridos leitores, com este texto proponho um novo exercício de reflexão e leitura para este espaço de encontro mensal. No sentido de enquadrar o que pretendo fazer, transcrevo um pequeno texto retirado de um artigo que causou em mim grande impacto.
“Passei a minha infância em Madrid. Costumava acompanhar a minha avó à missa de vez em quando e a fazer as compras no mercado junto da sua casa. Sempre dava dinheiro «aos pobres» que encontrava à porta do mercado ou da Igreja, Não dizia nada, mas recordo-a abrindo repetidamente a sua mala e dando algo com um sorriso. A minha avó não era rica, fazia muitas contas para chegar ao fim do mês. O que me chamava a atenção não é tanto o seu comportamento, mas, quando penso na minha infância, só recordo ver «os pobres» quando ia com ela: Não os havia quando ia com outros adultos ou sozinha, ou melhor, não os via. Esta pequena experiência infantil ilustra uma preocupação que me tem acompanhado ao longo dos anos: o que vemos e o que não vemos?
A minha avó, sem dizer nada, simplesmente com o seu olhar, ensinou-me a olhar. Nós não vemos a realidade social completa, nem de forma objetiva: isso não existe. Em cada momento vemos a realidade a partir de um ângulo, a partir de um determinado lugar hermenêutico, ou «varanda», como dizia o economista Luís sebastián:
«… escolhi tomar parte intencionalmente e ver as coisas e os assuntos humanos desde o ponto de vista dos pobres […]. Decidi por o meu talento, o muito ou pouco que Deus me deu, as minhas energias intelectuais, a minha caneta e a minha voz ao serviço – um modesto, tímido e longínquo serviço – de todos eles»
O olhar de um cristão não pode ser neutro. Precisamente, uma das coisas que mais me atraem e intrigam em Jesus é o como olhou a realidade na qual viveu. A sua capacidade para observar e deter-se ante a realidade sofredora que o rodeava. E ali encontrar Deus. O seu encontro com Deus surgiu do encontro com a dor e as fraturas do seu tempo. Jesus como a minha avó, como Luís Sebastián e tantos outros, tinha os mesmos olhos físicos que temos todos; mas o seu olhar era muito diferente. Via de maneira diferente. […]” (Cristina Manzanedo Negueruela, Desde la fe a la justicia, desle la justicia a la fe. El mundo, lugar de encuentro com Dios, in Revista Teología Pastoral 102/1 (2014) 22-23.)
Pois bem, proponho que olhemos a realidade a partir da experiência familiar; proponho que ensaiemos, neste espaço, um exercício que procure encontrar, a partir desse olhar, novas perspetivas e novos horizontes.
Sei que não é um olhar neutro, pelo contrário, é interessado, muito interessado até. Mas é isso mesmo que pretendo: sublinhar e destacar sempre o lugar fundamental da família na construção do tecido social e na experiência de vida de cada um.
O natal que acabámos de celebrar lança-nos também nesta pista. Ao decidir habitar no meio de nós e como um de nós, Deus faz a experiência basilar de todo o ser humano: ‘nasce’ no seio de uma família. Não aparece sem mais, não surge do nada, mas ‘acontece’ no meio de uma experiência familiar.
Que este ano de 2018 possa ser tempo, espaço e oportunidade para olharmos a vida e a realidade, a nossa e a dos outros, a partir da experiência familiar. E que isso nos permita descobrir novos horizontes e possibilidades, que nos ajudem a ir edificando um futuro mais justo e mais fraterno, capaz de promover a dignidade humana, aquela que o Deus em que acreditamos nos aponta como possibilidade real.
Juan Ambrosio – Jornal da Família – edição janeiro
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