Vinha de Raquel – Um caminho de recuperação espiritual e psicológica no pós-aborto

A interrupção voluntária da gravidez não é a solução do problema. Mas antes a origem de muitos. Há quem não consiga lidar com a dor, a angústia e a perda do filho gerado. Desde 2001 que o projeto Vinha de Raquel tem ajudado mulheres e homens a encontrar a paz interior após um aborto. Uma cura espiritual e psicológica que não tenta desresponsabilizar mas sim assumir uma vida na vida de cada pessoa.

Aos 23 anos, Carla, casada há quatro anos e mãe de dois filhos fica grávida. Os problemas de saúde do filho mais novo fizeram-na temer o pior e com medo que o filho agora gerado pudesse nascer deficiente, Carla, juntamente com o marido,  decidem interromper a gravidez. 16 anos mais tarde, aos 39 anos, num retiro para casais, Carla ganhou força e coragem e decidiu que ainda era altura para estar aberta à vida. “No entanto Deus, Senhor da vida, não permitiu que tal acontecesse”, conta Carla, nome fictício, ao Jornal da Família. Foi neste contexto de orientação religiosa que Carla foi convidada a refletir sobre a sua história de vida. “Veio-me à ideia esta questão do aborto, do qual eu sempre me tentava esquecer mas nunca o consegui apagar da minha vida. Nunca aceitei ter morto o meu próprio filho. Nunca me perdoei”, conta Carla.

Foi pela mão do padre da paróquia, que estava a par da situação, que Carla entrou em contacto com o projeto Vinha de Raquel e o ano passado realizou um dos retiros levados a cabo por este projeto. 30 anos depois do aborto Carla procurou ajuda.

A história de Maria é mais recente. Foi há cerca de quatro anos que interrompeu uma gravidez. Na altura tinha 14 anos. Durante este tempo entrou em processo de negação: “Sabia que tinha feito uma interrupção de gravidez mas isso não entrava na minha cabeça”, conta Maria, nome fictício. Católica, a participar na  missa dominical e a preparar-se para o crisma, nunca mais conseguiu entrar numa Igreja. A mãe, uma peça chave em todo o processo e também ela a sofrer com a situação, acompanhou a decisão da filha e acompanhou também o seu sofrimento ao longo destes anos. O ano passado, juntas, foram fazer o retiro Vinha de Raquel.

A cura espiritual e psicológica

O projeto Vinha de Raquel surgiu em 1993 nos Estados Unidas da América com a psicóloga Teresa Burke, autora de vários livros sobre o Síndrome Pós-Aborto. Chegou a Portugal em 2001 ligado ao Departamento da Pastoral da Família da Diocese de Lisboa. É um projeto que ajuda pessoas que praticaram aborto e que não conseguem lidar com a dor, angustia e sentimento de perda. Não se dirige apenas a mulheres mas também pais, familiares e profissionais de saúde de qualquer religião ou mesmo ateus.

A Vinha de Raquel é um processo de “cura espiritual e psicológica”, explica Maria José Vilaça, coordenadora do projeto. Inicialmente era um conjunto de sessões espalhadas no tempo mas, por questões operacionais, passou a concentrar-se num retiro de fim de semana.

Para a coordenadora e também psicóloga Maria José Vilaça o trauma provocado pelo aborto nada tem a ver com o ser legal ou ilegal mas sim no “provocar danos nos elementos mais essenciais da estrutura da constituição da mulher: a sua feminilidade, a sua maternidade, a sua sexualidade”.

A maior parte das pessoas que procura a ajuda da Vinha de Raquel tem um historial onde sobressaem vários sintomas entre os quais “a necessidade de se confessarem muitas vezes porque não se sentem perdoadas”, conta Maria José Vilaça. Mas muitas vezes os alertas têm muito a ver com “sintomas que se confundem com a depressão, consumo de álcool ou com uma vida afetiva desregrada”.  Muitas mulheres também chegam com sintomas pós-traumáticos como o “não querer estar perto de crianças porque sentem emoções fortes ou a lembrança da data em que a criança deveria ter nascido”.

“A Igreja Católica é a única estrutura que dá apoio pós-aborto”, afirma Maria José Vilaça, coordenadora do projeto Vinha de Raquel

O retiro
O processo de cura “espiritual e psicológica” é realizado durante um retiro que ocorre durante um fim de semana onde uma psicóloga e um sacerdote trabalham estas duas dimensões.Verificou-se que para muitas mulheres não bastava o perdão sacramental, precisavam de um trabalho psicológico para poderem acolher a perda. “Nós trabalhamos as dimensões da culpa, do luto e a dimensão do perdão, a dimensão do perdão que a pessoa tem de dar a alguém”,  explica Maria José Vilaça. “Muitas vezes uma pessoa não acolhe o perdão porque ela própria não perdoou a alguém. E isto é algo que não aparece na confissão. Aparece neste processo psicológico que nós fazemos”, acrescenta.

O retiro, durante o fim de semana, segue uma lógica semelhante ao percurso pascal: passar da dor da morte à alegria da ressurreição. A pessoa chega confrontada com os seus medos, com a sua condição de pecadora, à procura de ajuda.  Depois há a partilha da história, da dor que traz consigo e, no final do processo, a chegada a uma paz consigo própria. “É um processo terapêutico porque as pessoas não estão sozinhas, estão acompanhadas de outras pessoas que passaram pelo mesmo, sentem-se envolvidas num ambiente protetor e seguro e estão em comunhão, em comunidade. É um processo completamente eclesial”, afirma Maria José Vilaça.

Integrar a criança na vida da pessoa

Uma componente importante é o luto. Muitas mulheres têm manifestado a necessidade de haver um espaço para fazer memória.  “É preciso que haja um sitio onde se possa fazer o luto desta criança que morreu, fazer memória, depositar um flor”, conta Maria José Vilaça.  Tal como é importante dar um nome à criança. “Dar-lhe um nome é reconhecer a sua existência. Reconhecer que havia uma criança que está com Deus, que ela tem um papel na vida da mãe, do pai, da família, no fundo, é preciso restabelecer esta relação que aparentemente foi quebrada pela aborto”.

Quando se faz o aborto costuma-se dizer “não penses mais nisso” e as pessoas são deixadas com as culpas do ato que praticaram. Parte-se do princípio que as pessoas que abortaram o fizeram de livre vontade. “A Igreja Católica é a única estrutura que dá apoio pós-aborto”, afirma Maria José Vilaça. O que o projeto Vinha de Raquel faz “é voltar a chamar essa criança à vida da pessoa, restabelecer essa ligação e dar a essa criança também a possibilidade de, em conjunto com a mãe ou com o pai,  refazer a relação perdida com Deus. É isso que uma criança faz e isso é algo terapêutico”.

“Não se pretende desculpabilizar, nem desresponsabilizar mas pretende-se levar a responsabilidade até ao fim e assumir: agora que estou arrependida(o), pedi perdão,  agora existe um filho e existe uma relação que é para continuar”.

Foi esta caminhada que Carla fez, no ano passado, num dos retiros da Vinha de Raquel.  “Ajudou-me a reconciliar comigo e com todas as pessoas que de alguma forma me incentivaram a tomar esta decisão.  Aprendi que o meu filho não morreu mas está sempre comigo, a proteger-me, e ama-me como ninguém”, conta Carla.

Maria, agora com 18 anos, afirma que os dias de retiro “foram dias muito duros, chorei muito, mas aprendi muito. Fez-me considerar o meu filho como tal, porque antes eu não o considerava como tal. Passou a ter uma papel na minha vida. Agora digo ao meu namorado: quando tiver um filho ele não vai ser o meu primeiro filho, vai ser o meu segundo filho. O primeiro já o tive e chama-se Miguel”, conta Maria que voltou a entrar na Igreja da paróquia. Quando se lhe pergunta se hoje tivesse 14 anos o que faria, Maria não hesita em responder: “Teria o bebé porque isto foi um sofrimento muito, muito grande”.

Carla, a conselho da equipa da Vinha de Raquel, começou a rezar o Terço de Raquel por todos os que de alguma forma estão neste processo do aborto e isso ajudou-a “a conseguir alguma  paz interior”. Para todos aqueles que se confrontam com esta situação, Carla deixa uma mensagem :“Não nos deixemos enganar nunca por quem nos diz que somos donas do nosso corpo, enquanto há outra vida que se gera dentro de nós.  Só conseguimos ganhar a nossa vida quando damos vida a alguém. Para o projeto de Deus, para a salvação do homem, ter um filho é a forma mais nobre de dar vida a alguém”.

Quanto a este projeto Maria José Vilaça remata: “Pecadores somos todos. Não temos que ficar retidos nos nossos erros, o pecado não é a última palavra.  Há sempre uma palavra de redenção e de esperança”.

IM/Jornal da Família – edição fevereiro 2018

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