Ao serviço de Deus no meio do mundo

24 anos. Licenciada em Matemática Aplicada à Economia e à Gestão. Cooperadora da Família. Angélica Galvão nasceu e cresceu no seio de uma família católica. A mesma que agora não entende a sua entrega a Deus. Em entrevista ao Jornal da Família, Angélica Galvão fala do seu percurso vocacional e da forma como a sociedade olha hoje para uma jovem que trocou uma carreia financeira promissora pela entrega a Deus.

Jornal da Família – Nasceste numa diocese do interior, Lamego, que recordações guardas da infância?

Angélica Galvão Ui tantas… Recordo o passado com muita gratidão! Desde o rezar o terço à lareira com os avós, o acordar obrigatório aos domingos para ir à missa, o acordar às 5h da manhã para rumar às novenas da grande festa da Senhora dos Remédios, em Lamego, as brincadeiras, tontas, com os meus primos,… É verdade que, como tenho dito, sinto que a minha Fé era vazia, porque para mim tudo era um dado adquirido, não questionava nada, fazia tudo como mandava “a Lei”, mas é ainda mais verdade que a Fé transmitida pela família nestas pequenas coisas, deixava semente. E eu lá ia cultivando com as conversas à noite com Deus, quando ninguém ouvia. Deus era como aquele amigo a quem eu contava tudo, até as coisas mais parvas. Mas só o fazia à noite pois tinha a ideia de que naquele momento toda a gente dormia e assim Ele ouvia-me só a mim com toda a atenção.

Dizias no teu testemunho vocacional que, na infância, a tua fé “era vazia e mais não era que uma extensão da fé dos teus pais e avós”. Como é que surgiu, então, a tua vocação?

Sim, eu até iria mais ao extremo de dizer que se calhar não tinha fé, mas uma mera crença transmitida pelos meus antecessores. Tomava tudo como verdade sem pensar muito sobre o assunto, sem questionar nada.

E a consciência da minha vocação surge precisamente a partir do momento em que eu me começo a questionar, quer a nível das grandes questões existenciais, quer a nível da própria fé. Surge a partir do momento em que eu começo a fazer realmente, verdadeiramente, a experiência de Deus; surge a partir do momento em que há «o encontro com um acontecimento, com uma Pessoa que dá à vida um novo horizonte», como diria Bento XVI; surge quando no meio de tantas interrogações ‘A’ pergunta: – “Queres oferecer-te a Deus?” responde à pergunta: Para quem sou?

Curiosamente a tua vocação surgiu num meio que tu consideras “não-cristão” e com muitas “contracorrentes”. Como era vista, no meio académico, esta tua vocação?

Sim, esta minha descoberta vocacional surge quando eu estava na faculdade a estudar Matemática Aplicada à Economia e à Gestão, um meio onde a competitividade e a luta por se ser o melhor era natural. Portanto, valores como o da caridade e da cooperação não estavam assim tão visíveis. Além disto, sempre que havia alguma referência à Fé ou havia alguma iniciativa de caris religioso notava-se estranheza em alguns colegas. Claro que não quero generalizar! Felizmente projetos como o da Missão País e outros projetos solidários conseguiram penetrar no coração do ISEG. Mas, foi aí, neste meio, tendo um olhar mais atento às entrelinhas dos valores que me iam passando e a tudo o que me estava a ser ensinado, que entendi que me estavam a ser dadas as ferramentas certas para trabalhar por um mundo melhor. 

A minha vocação não era vista no meio académico porque visivelmente não tinha, (nem tenho!) nada que me distinguisse dos meus colegas. Aliás, eu fiz tudo o que um estudante universitário minimamente extrovertido faz: sair à noite, beber uns copos com uns amigos, ir ao cinema e a concertos,… Contudo, o grupo mais chegado de amigos sabia desta minha opção de vida e eles foram importantíssimos nestes 5 anos de discernimento e formação inicial pois questionavam-me muito sobre questões de Fé e sobre a opção em si. Embora ache que mesmo esses nunca entenderão bem esta minha opção de vida pelos votos que professei – Pobreza, Castidade e Obediência. Para eles é um pouco surreal alguém abdicar de viver com grandes luxos quando o salário assim o permitiria ou ainda a questão de abdicar de ter um marido e filhos. Mas eu também não estou à espera que todos com quem me cruzo diariamente entendam porque a sociedade aponta sempre para outros caminhos. Agora o meu papel é ser sinal na terra daquilo que todos um dia viveremos no Céu; é ser sinal de que é possível ser feliz seguindo por um caminho “diferente” e que preenche o coração.

Nos últimos cinco anos fizeste formação no Instituto Secular das Cooperadoras da Família e no passado dia 15 fizeste a 1ª Oblação. É a primeira etapa de uma entrega perpétua a este Instituto?

Eu diria sim que é a primeira etapa de uma entrega a Deus, no Instituto! (a entrega não é ao Instituto, pois a vocação é sempre uma questão que se coloca entre mim e Deus). Por exemplo, se usarmos a imagem de uma Volta em Bicicleta, há 5 anos atrás iniciei o Prólogo, onde fiz discernimento sério e de muita formação cristã, teológica e eclesial. Agora a 1a Oblação foi como que a primeira etapa pública daquilo que estava no meu coração e no ambiente Instituto e agora durante mais 5, terei várias etapas até essa entrega perpétua a Deus e à Sua Igreja, no Instituto. A meta não é isto, mas Cristo. E o Instituto é como que a equipa pela qual corro dentro do grande pelotão que é a Igreja. E a corrida nunca acaba!… É preciso continuar a treinar e a praticar, pois a corrida tem descidas e subidas, tem dias que fará sol e outros que fará chuva, tem dias em que temos cãibras e temos de fazer sacrifícios acrescidos, mas a Meta é algo que nos atrai sempre mais e não nos deixa desistir.

Escolheste um instituto de vida secular. O que te faz optar por uma consagração secular?

É engraçado perguntares isso pois quando comecei a interrogar-me só conhecia algumas congregações religiosas e a vida contemplativa (irmãs Carmelitas e irmãs Clarissas)… E, apesar de já sentir que Deus tinha um desígnio para mim maior do que aquele que eu tinha, não me sentia chamada a nenhuma das realidades que conhecia bem, nem me identificava com os carismas. Não sei bem! Os carismas eram desafiantes e bonitos, mas sentia que não era bem ali. Entretanto, por acaso (ou não!!!) conheci o Instituto e, curiosa como sou, quis saber como é que era, quem eram as ditas Cooperadoras e o que faziam. O que é certo é que eu me fui apaixonando pelo padre Brás, pela sua visão e pelo carisma que o Espírito Santo lhe intuiu e deu-se o “clique”. Deus tinha preparado para mim uma entrega possível no meio do mundo, da sociedade, da Igreja, das famílias, na família. Era o projeto perfeito: ser fermento no meio da massa! Ser os pés e as mãos de Jesus nesta terra sem que ninguém visivelmente se apercebesse que a Boa Nova está subtilmente a acontecer! Que felicidade! Sou consagrada, não uso hábito e continuo a usar as sapatilhas que confortavelmente gosto de calçar.

Portanto, optei por uma consagração secular, não por capricho, mas porque é no meio do mundo que me sinto chamada a estar e a realizar a missão que Deus sonhou para mim, com a perfeita consciência de que todos os carismas tornam a Igreja belíssima e que muitos deles muitas vezes são o meu suporte através da oração.

Terminaste este ano o Curso de Matemática Aplicada à Economia e à Gestão. Como pensas conciliar a tua formação académica com a tua opção vocacional?

Na altura em que entrei para este curso a questão vocacional ainda não estava em cima da mesa e o que é certo é que eu gostava muito de matemática. E conciliar a universidade com a vocação não foi difícil pois a vida é vocação e a universidade fez parte desta vida, sem incompatibilidades porque, como disse, Deus tinha sonhado o projeto perfeito para mim.

Agora se me perguntas: ‘e se a questão vocacional já estivesse em cima da mesa na altura de decidires o futuro entrarias no mesmo curso?’ – a resposta continuaria a ser sim, pois eu acredito que foi Deus que me pôs naquele curso. Ele estava lá (como está sempre!) no momento da decisão, por muito estranhas que às vezes as decisões pareçam. Até nas erradas! E pensando bem, se não tivesse entrado neste curso, não tinha vindo para Lisboa e não tinha conhecido o Instituto e, muito provavelmente, nunca me teria questionado vocacionalmente, nem apreendido o próprio casamento como vocação. “Deus escreve direito por linhas tortas!”, lá diz o povo, e por isso hoje estou aqui e sou uma consagrada feliz!

Na altura de conciliar a formação académica com a minha vocação Deus o dirá através dos meus superiores, porque eu quero fazer somente o que Ele quiser para mim e sei que isso me realizará como pessoa.

Neste momento para além de toda a missão que desenvolvo com as famílias na paróquia onde estou inserida e os jovens, o que me foi pedido, assim, a nível laboral, é que trabalhe no Gabinete de Desenvolvimento Estratégico da Escola da Fundação Monsenhor Alves Brás onde de facto é possível aplicar um pouco da minha formação. O futuro a Deus pertence e a ver vamos o que é que Ele tem reservado para mim! Embora não pareça, a minha formação é bem necessária na Igreja e no Instituto, a ver vamos! A fazer contas ou não, sei que estou feliz, porque estou a fazer o que Ele quer.

Como pensas que a sociedade olha hoje para uma jovem licenciada que decide colocar-se ao serviço da Obra de Deus?

A sociedade em geral? Com alguma incredulidade, creio. Ainda para mais quando se tinha uma carreira financeira promissora…

No outro dia, uma senhora que me conhecia e soube desta minha decisão a primeira reação foi de espanto e quase em simultâneo perguntou: ‘então mas o curso?’, ‘então mas e os filhos?’, ‘então mas e a casa e o carro?’ Então mas!… as pessoas vivem ainda muito voltadas para o tangível, para o material. Parece que não ter filhos e não ter apropriação de bens é quase como não existir. Eu posso ser mãe de outra forma, eu posso não ter nada e ter Tudo! Seja como for é bom! É muito bom! E não sinto que ter abdicado só de mais um homem é assim tão descabido da realidade, trata-se de ser fiel e coerente com uma opção que eu fiz em liberdade. Se eu casasse também teria de deixar todos os outros homens e fazer alguns sacrifícios para ser fiel ao compromisso a que me propunha.

A tua família que te deu a conhecer a Igreja, é a mesma família que hoje tem dificuldade em aceitar esta tua vocação. No dia da 1ª Oblação apenas um primo teu te acompanhou… Queres comentar?

Infelizmente na vida temos de saber integrar as pedras que poderão aparecer no caminho…

Não vou dizer que estou bem com toda esta situação que se gerou na minha família e para mim seria mesmo muito importante ter o apoio daqueles que me amam por inerência dos laços familiares, mas quero pensar que isto é só mais um teste à minha vocação! É só Deus a (pro)vocar! ‘Porque é que eu estou aqui?’ ‘Para quem é que eu sou?’ ‘Não tomaste a decisão livremente?’

Eu até entendo e sei que não deve ser fácil para eles que tomam esta decisão como um “abandonar a família”.

Segues um carisma que aposta na família mas a tua a família é a primeira a não entender que isso possa ser o caminho da tua felicidade….

Verdade! E no fundo é isso que torna a situação mais dolorosa. Não é tanto a família não entender esta minha decisão que me faz sofrer, mas o eles não tomarem parte da minha felicidade. Também me ponho no lugar deles e sei que não é fácil, ainda para mais quando se tinha muitas expectativas em ti. Com o tempo espero que a sua ideia possa ser convertida e que percebam que eu não abandonei, mas que desta forma estou mais unida a eles, quer pela inerência do próprio carisma, mas especialmente pela oração.

Tenho rezado muito toda esta situação e a verdade é que Deus continua a dizer-me «acaso pode uma mulher esquecer-se do seu bebé, não ter carinho pelo fruto das suas entranhas? Ainda que ela se esquecesse dele, eu nunca te esqueceria» (Is 49). Portanto, eu tenho a esperança de que um dia eles possam aceitar a minha decisão, porque o amor é sempre mais forte. Talvez através desta situação Deus me esteja a despertar para esta realidade nas famílias e queira lembrar-me do quão importante é ajudar os pais a crescerem na Fé e a perceberem que mais importante que gerar é fazer crescer para se tomarem decisões grandes, livres e comprometedoras. Só assim teremos uma grande “família de famílias”, pautada pela coerência, integridade e justiça. O Fundador dizia muitas vezes: “Salvemos a família e salvaremos o mundo!”.

Consideras que ainda permanece muito o estereótipo que a felicidade de uma mulher ou de um homem ainda se mede pelo sucesso profissional, por um casamento e uma família?

Infelizmente, sim.

O que te imaginas a fazer daqui a 10 anos?

Não sei. Sei que não quero viver iludida, mas sempre entusiasmada (isto é, em Deus) e, citando Daniel Faria, «Seja o que for / será bom / é tudo.»

Entrevista: IM – Jornal da Família

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