Decretar o estado de solidariedade

“Depois do estado de emergência, deveremos todos decretar um estado de solidariedade nos nossos corações”. A reflexão de Carlos Campos na edição de junho do Jornal da Família.

De repente, a pandemia COVID-19 invadiu as nossas vidas e condicionou-as de forma drástica e inédita. Passou a ser tema inevitável e cansativo de todos os noticiários e conversas. Passaram três meses e reconhecemos que alguns hábitos e ideias não eram tão certos quanto pensávamos. A nossa liberdade de circulação pode ser ameaçada por um vírus. A ciência médica ainda tem muito que descobrir. O mercado não é capaz de dar resposta em situações de emergência de grandes proporções. Há muita matéria para refletir na sequência desta pandemia. Nesta edição, vou sugerir algumas sugestões de reflexão.

Primeira: a pandemia ainda não terminou. O facto de Portugal ter evitado o caos e continuar a ter resultados encorajadores não significa que a ameaça tenha passado. Basta lembrar que quando nos disseram para ficarmos em casa, o número de pessoas infetadas era muito inferior. Os conselhos de proteção e cuidado são para levar a sério.

Segunda: ouvimos notícias sobre o facto de a paragem de muitas atividades ter diminuído as emissões poluentes para a atmosfera. É natural: menos automóveis em circulação, aviões em terra, fábricas e lojas encerradas… Algumas destas notícias podem ter levado a pensar que a economia e o ambiente são inimigos. Até podem ter levado a pensar que a atividade humana é, por definição, poluidora e inimiga da natureza e do ambiente. Estas ideias são perturbadoras e perigosas, se nos levarem a cair naquele tipo de fundamentalismo segundo o qual o homem deve servir a natureza e não o contrário. Devemos acreditar que a natureza (a Criação) existe para satisfazer a humanidade. Isso não significa que o homem possa ou deva delapidar os recursos naturais. A paragem das atividades, por si própria, não faz bem à saúde, nem ao ambiente. É apenas uma forma extrema e temporária de evitar o contágio. Além disso, há atividades cuja paragem é, por natureza, prejudicial para a saúde (os serviços de saúde, por exemplo) e para o ambiente (a recolha seletiva dos resíduos, por exemplo). Há neste tema uma reflexão a fazer: o bem estar das Pessoas e da Natureza devem ser objetivos harmónicos e colocar esses objetivos em antagonismo é um mau caminho.

Terceira: depois de termos ouvido e lido muitos argumentos contra tudo o que é descartável, a pandemia veio lembrar-nos que há coisas que não podem deixar de ser de uso único, isto é, descartáveis. Durante as semanas do estado de emergência, os estabelecimentos de restauração só foram autorizados a servir refeições em regime de “take away”, isto é, refeições para levar, acondicionadas em embalagens descartáveis. As batas de proteção dos profissionais de saúde em zonas de isolamento são também descartáveis, tais como as luvas. Não pode deixar de ser assim, porque a partilha ou mesmo o simples manuseamento de objetos reutilizáveis pode envolver risco de contágio. Aprendemos, portanto, que o descartável tem uma função e um lugar: é necessário para garantir a higiene, a ausência de contágio, a segurança de todos. Aprendemos ainda que só é sensato reutilizar ou mesmo reciclar se isso não colocar em risco a saúde (a nossa e a de todos). Aprendemos que o plástico e o descartável não são maus por natureza. São maus quando são usados em excesso e sem necessidade.

Quarta: todas estas exigências de proteção, de higiene e mesmo de distância parecem-nos exageradas. Algumas delas – como as máscaras, os 2 m de distância e os cumprimentos sem contacto físico – vão desaparecer. Mas outras deverão permanecer, por muito exageradas que pareçam. Os níveis de higiene e de segurança dos produtos alimentares devem-se aos procedimentos rigorosos que as indústrias alimentares adotaram nas três décadas mais recentes. É por isso que podemos confiar na segurança dos alimentos embalados. Chegou a hora de termos o mesmo nível de rigor e segurança nos cafés e restaurantes. O mesmo se diga das escolas, creches e jardins-de-infância. Se soubermos transformar os procedimentos de higiene numa nova “normalidade”, um dia que surja nova pandemia não será necessário fechar as escolas porque serão abrigos seguros (como as indústrias alimentares foram nesta pandemia!). Lavar as mãos, não tossir para o ar, embalar os talheres, desinfetar as mesas, os assentos dos transportes públicos, etc. – não são medidas extraordinárias. Há que aprender com a pandemia. Se não aprendermos, virá outra para nos ensinar…

Quarta: os efeitos da pandemia vão ser duríssimos para muitas pessoas. Já estão a ser. Depois das estatísticas, das máscaras, doslay offs, não vamos ficar todos bem. As dificuldades não vão ser iguais para todos. Durante um ano ou dois (pelo menos) teremos focos de crise social e humanitária, aos quais não se pode responder com as medidas e práticas de sempre, baseadas na demagogia, no egoísmo, na aparência ou na indiferença. Há que refletir e agir ajudando, ainda que discretamente, o vizinho do lado ou o país longínquo. Ninguém é feliz sozinho. Depois do estado de emergência, deveremos todos decretar um estado de solidariedade nos nossos corações.

Carlos Campos
Artigo da edição de junho do Jornal da Família

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