Deus e Pandemia

A fragilidade e a impotência da condição humana perante o sofrimento e a morte provocado por uma pandemia global a dar o mote à reflexão de Octávio Morgadinho.

 “- Pensa então, como Paneloux, que a peste tem o seu lado bom, que abre os olhos, que força a pensar?
 

[…] – Como todas as doenças do mundo. Mas o que é verdade em relação aos males do mundo é também verdade em relação a peste. […] quando se vê a miséria e a dor que ela traz, é preciso ser-se louco, cego ou covarde para se resignar à peste.”

                                                                                                                       (A peste ed. fr. p. 141-147; tr. port. 111.115)
 

A  presente pandemia SARS-CoV-2 (vírus) COVID-19 (doença)identificada na cidade chinesa de Wuhanem fins do ano passado, difundiu-se meteoricamente por todo o mundo e prossegue a sua expansão, espalhando o rasto de sofrimento, morte e miséria. É mais uma situação-limite que desperta o sentimento da radical fragilidade e impotência da condição humana perante a doença, o sofrimento e a morte que “força a pensar”. Por isso provocou na civilização do bem-estar reações primitivas de medo, terror e impotência semelhantes às múltiplas pestes da história com efeitos sociais, económicos e culturais que conhecemos. O choque atual é tanto maior quanto a cultura e modo de vida de hoje assentam na suposta segurança das instituições sociais, no funcionamento da economia, na regulação das relações de produção e trabalho e nos sistemas de assistência e previdência públicos criados para assegurar proteção em todas as situações. O sentimento de insegurança é hoje tanto maior quanto adormecido por garantias que as crises revelam contingentes. 

A epidemia é uma das situações-limite da radical condição existencial humana que apela à subida de nível na procura de explicação racional para as questões que vão além do factual e fenoménico: as questões de sentido: do que somos, do porquê e para quê do que nos afeta ou preocupa, da dignidade do ser humano, dos seus direitos e deveres, da liberdade, da responsabilidade, da justiça, do bem e do mal, dos valores morais e religiosos que suportam a tomada de decisões e o compromissos da ação.

Todas estas questões apontam para a transcendência, para uma justificação da experiência humana que vai além do factual e o condiciona. É este o campo dos valores e sua validação, o problema da existência Deus, da sua natureza e relação com a existência humana, da ética, da metafísica, da religião. Estas questões podem ser abordadas numa perspetiva exclusivamente racional na filosofia ou prosseguir para o campo da fé, na abertura ao sobrenatural, da crença baseada numa revelação concreta de Deus das apresentadas pela tradição e envolvidas nas culturas.

Deliberadamente situamos a abordagem desta temática no romance de Albert Camus A Peste que já nos motivou para anterior artigo. O texto que publicamos acima como introdução envolve três das suas personagens. Duas delas, Dr. Rieux e Tarrou, protagonizam o debate que tem como fundo a prédica proferida dias antes na catedral de Oran pelo Padre Paneloux, um Jesuíta prestigiado na cidade. É suposto que a sua exposição e argumentação representam a visão religiosa cristã sobre o deflagrar da peste.

 Os personagens, as suas ideias e o seu envolvimento na trama da ação são criação do autor. Encarnam os seus pontos de vista acerca do tema que aqui tratamos: O Dr. Rieux o cronista do romance representa o autor. Camus “recusa” assumir uma perspetivação religiosa. O Dr. Rieux é médico. Por imperativo da profissão está envolvido no combate à epidemia. Pretende criar um corpo de voluntários que com ele colaborem. Tarrou vem oferecer-se para se responsabilizar pela organização. O Dr. Rieux adverte-o dos riscos da proposta: “Esse trabalho pode ser mortal, bem sabe. Devo, portanto, preveni-lo. Refletiu bem?” (p.142)

A pergunta desencadeia o diálogo que se transforma em partilha de convicções, motivações e dúvidas pessoais perante os desafios e riscos envolvidos no combate à pandemia. Andam no ar os comentários à pregação do Padre Paneloux e ao teor da sua mensagem: “Meus irmãos, a desgraça caiu sobre vós; bem a merecestes, irmãos”. […] “Se hoje a peste vos atinge é porque chegou o momento de refletir. Os justos não podem receá-la, mas os maus têm razão para tremer” (p.110). 

A pregação fora ouvida pelos dois. Tarrou aproveita-a para confrontar as suas dúvidas acerca de Deus. O Dr. Rieux contesta o teor académico da pregação de P. Paneloux que não reflete a mínima experiência de lidar com a morte de alguém como “o mais humilde prior de aldeia que “cuidaria da miséria antes de demonstrar a sua excelência”. (p.143)

Rieux hesita quando Tarrou lhe faz a pergunta: “Acredita em Deus, Doutor”?

“Não” – responde. “Estou nas trevas e tento ver claro.” 

Tarrou insiste: ”Porque demonstra tanto empenho se não acredita em Deus?”. Justifica a pergunta com as sua insegurança: “A sua resposta pode ajudar-me a responder a mim próprio.” (Ib. 143)

Rieux explica que a experiência no confronto com a doença, com a miséria, com a injustiça o levava a acreditar que a ordem do mundo, a criação, está errada e não pode aceitar um Deus tal como Paneloux o descreve conivente com essa desordem e injustiça: “Visto que a ordem do mundo é regulada pela morte, talvez valha mais para Deus que não acreditemos n’Ele e que lutemos com todas as nossas forças contra a morte, sem erguer os olhos para o Céu, onde Ele se cala.” 

Rieux encontra na revolta contra o mal, contra a desordem da criação, contra a injustiça da desordem humana de que todos são coniventes – todos somos pestíferos, portadores da peste da desigualdade, da violência, da pobreza, de todas as formas de injustiça – a sua recusa de Deus. Não uma é revolta negativa, mas uma revolta prática compromisso de corrigir o que está errado, minorar as consequências do mal: “De momento se existem doentes é preciso curá-los. Em seguida eles refletirão e eu também. Mas o mais urgente é curá-los”. (p.144)

No fundo, é contra o Deus de Paneloux, autor do sofrimento e da morte, que Rieux se rebela. O Deus de Rieux é a mesmo de Paneloux. São projeção da conceção de Deus expressa no imaginário no romance. É interessante aprofundar o reparo de Rieux à pregação de Peneloux, contrapondo-a à experiência vivida dos cristãos: “Os cristãos falam por vezes assim, sem o pensar realmente. São melhores que parecem” (p.142). O sermão de Paneloux mais próximo das doutrinas da condenação, predestinação e impotência da razão e esforço humano do Jansenismo do que da espiritualidade e prática dos Jesuítas que se lhe opõem (Cf. Moya Longstaffe, The Fiction of Albert Camus: a complex simplicity).

Por nós limitamo-nos a contrapor à pregação de Paneloux, à sua visão de Deus e práticas que envolve a de um outro jesuíta, o Papa Francisco, também numa pregação, esta dirigida a toda a Igreja na Bêncão Urbi et Orbi da oração promovida por elena Basílica de S. Pedro, a 27 de março de 2020 [ Recomendamos a sua leitura integral]. Francisco aplica o texto evangélico de Marcos (4, 35-43),situando-se na tempestade da atual pandemia:

«Porque sois tão medrosos? Ainda não tendes fé?» Senhor, lanças-nos um apelo, um apelo à fé. Esta não é tanto acreditar que Tu existes, como sobretudo vir a Ti e fiar-se em ti Ti. […] Chamas-nos a aproveitar este tempo de prova como um tempo de decisão. Não é o tempo do teu juízo, mas do nosso juízo: o tempo de decidir o que conta e o que passa, de separar o que é necessário daquilo que não o é. É o tempo de reajustar a rota da vida rumo a Ti, Senhor, e aos outros. E podemos ver tantos companheiros de viagem exemplares, que, no medo, reagiram oferecendo a própria vida. É a força operante do Espírito derramada e plasmada em entregas corajosas e generosas. É a vida do Espírito, capaz de resgatar, valorizar e mostrar como as nossas vidas são tecidas e sustentadas por pessoas comuns […] que estão a escrever os acontecimentos decisivos da nossa história: médicos, enfermeiros e enfermeiras, trabalhadores dos supermercados, pessoal da limpeza, curadores, transportadores, forças policiais, voluntários, sacerdotes, religiosas e muitos – mas muitos – outros que compreenderam que ninguém se salva sozinho. Perante o sofrimento, onde se mede o verdadeiro desenvolvimento dos nossos povos, descobrimos  exercitam a paciência e infundem esperança, tendo a peito não semear pânico, mas corresponsabilidade! 
 

[…] O Senhor interpela-nos e, no meio da nossa tempestade, convida-nos a despertar e ativar a solidariedade e a esperança, capazes de dar solidez, apoio e significado a estas horas em que tudo parece naufragar. O Senhor desperta, para acordar e reanimar a nossa fé pascal. Temos uma âncora: na sua cruz, fomos salvos. Temos um leme: na sua cruz, fomos resgatados. Temos uma esperança: na sua cruz, fomos curados e abraçados, para que nada e ninguém nos separe do seu amor redentor. No meio deste isolamento que nos faz padecer a limitação de afetos e encontros e experimentar a falta de tantas coisas, ouçamos mais uma vez o anúncio que nos salva: Ele ressuscitou e vive ao nosso lado. Da sua cruz, o Senhor desafia-nos a encontrar a vida que nos espera, a olhar para aqueles que nos reclamam, a reforçar, reconhecer e incentivar a graça que mora em nós. […] Abraçar a sua cruz significa encontrar a coragem de abraçar todas as contrariedades da hora atual, abandonando por um momento a nossa ânsia de omnipotência e possessão, para dar espaço à criatividade que só o Espírito é capaz de suscitar. Significa encontrar a coragem de abrir espaços onde todos possam sentir-se chamados e permitir novas formas de hospitalidade, de fraternidade e de solidariedade. Na sua cruz, fomos salvos para acolher a esperança e deixar que seja ela a fortalecer e sustentar todas as medidas e estradas que nos possam ajudar a salvaguardar-nos e a salvaguardar. Abraçar o Senhor, para abraçar a esperança. Aqui está a força da fé, que liberta do medo e dá esperança.”

Octávio Gil Morgadinho

Artigo da edição de julho do Jornal da Família

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