A Carta Encíclica que o Papa Francisco assinou em Assis, junto ao túmulo de S. Francisco, em 3 de outubro passado, é candidata a especial relevo na vasta série de notáveis encíclicas sociais com que os Papas dos dois últimos séculos apontaram diretivas e refletiram o envolvimento dos militantes católicos nas relações de trabalho, produção e distribuição da riqueza, na participação na atividade social económica e política. Nas intervenções da Igreja no campo social sempre esteve em jogo a salvaguarda da dignidade da pessoa humana e dos seus direitos inalienáveis, a justiça nas relações interpessoais e comunitárias, visando a convivência pacífica na diversidade das situações, culturas e interesses. A doutrina social da Igreja que daí resultou procura harmonizar reflexão e prática, atenção à realidade concreta e sua evolução numa perspetiva crítica, aberta e dialogante. Tem acompanhado a intervenção da Igreja, fomentado a cooperação com as instituições sociais e políticas globais ou regionais, suscitado o diálogo e envolvimento das outras Igrejas cristãs, dos crentes das diversas religiões e seus líderes e, em geral, com todos os “homens de boa vontade” na procura duma sociedade mais justa, fraterna e pacífica, sempre mais humana.
Nesta tradição quer inserir-se o Papa Francisco que inicia a sua Encíclica definindo o seu objetivo, motivação e atitudes básicas: “Entrego esta encíclica social como humilde contribuição para a reflexão, a fim de que […] sejamos capazes de reagir com um novo sonho de fraternidade e amizade social que não se limite a palavras. Embora a tenha escrito a partir das minhas convicções cristãs, que me animam e nutrem, procurei fazê-lo de tal maneira que a reflexão se abra ao diálogo com todas as pessoas de boa vontade” (Fratelli Tutti,n.6).
Teremos ocasião de vincá-las na leitura atenta deste longo texto distribuído por 8 capítulos, 287 parágrafos e mais de trinta e sete mil palavras na versão portuguesa e nos comentários que espero poderei vir a fazer.
Permito-me sublinhar no texto citado as expressões: “sejamos capazes de reagir com um novo sonho de fraternidadee amizade social que não se limite a palavras”. Explico: A Encíclica não é um inerte texto doutrinal que se limite a elaborar conceitos profundos e belas imagens literárias, que se fique pela especulação ou imaginação, é umaprovocação, um apelo à reação, impele à ação, porque nos situa na realidade que vivemos. A consciência da presente situação humana global ou próxima implica o comprometimento de todo o ser humano na transformação dessa realidade de acordo com os valores da dignidade inerente a cada pessoa humana. Neles se inclui a fraternidade, a relação com o outro como igual em dignidade, outro eu livre, como irmão independentemente da sus condição concreta e proximidade no tempo e no espaço. Essa relação não pode limitar-se a palavras de apoio, excitação ou explicação; implica o cuidado, a colaboração, a ação comum em ordem a objetivos que os transcendem.
Francisco, o Papa, tem feito jus ao onomástico que adotou, procurando renovar nas circunstâncias atuais os gestos proféticos de Francisco de Assis. A Encíclica foi devidamente preparada com contatos, deslocações e participação em encontros cujas decisões, se firmaram em compromissos e conduziram a programas de ação. A Encíclica recolhe várias dessas intervenções e sistematiza a documentação que delas resultou.
Já aqui referimos (Cristianismo e Islamismo rumo à cultura do respeito mútuo do diálogo e ação comum(Jornal da Família, março de 2019) a visita do Papa Francisco aos Emirados Árabes Unidos e Abu Dhabi de 3 a 5 fevereiro 2019 para participar no colóquio inter-religioso sobre o tema ”Fraternidade humana” realizado em comemoração doutro encontro histórico, o de Francisco de Assis com o sultão al-Malik al-Kamil em 1219. Nessa visita consolidou o diálogo com Ahmad Al-Tayyeb Grande Íman da Universidade sunita de al-Azhar Al Sharif no Cairo que conduziu à assinatura e publicação do Documento sobre a fraternidade humana em prol da paz mundial e da convivência comum (Abu Dhabi 4 de fevereiro de 2019). AEncíclica refere o evento: “Não se tratou de mero ato diplomático, mas duma reflexão feita em diálogo e dum compromisso conjunto. Esta encíclica reúne e desenvolve grandes temas expostos naquele documento que assinamos juntos.” E na continuação refere que adotou semelhante abertura para incluir outras colaborações menos notadas: “Aqui, na minha linguagem própria, acolhi também numerosas cartas e documentos com reflexões que recebi de tantas pessoas e grupos de todo o mundo.”
A longa lista de 288 notas ao texto reflete essa variada documentação. Nela aparecem ao lado de intervenções da hierarquia de todo o mundo nomeadamente portuguesa, referências ao Filmede Wim Wenders (O Papa Francisco – Um homem de palavra. A esperança é uma mensagem universal (2018)[ nota198]) e a Vinicius de Moraes («Samba da Bênção», no disco Um encontro no «Au bon Gourmet» (Rio de Janeiro 02/VIII/1962) [ nota 204]. Não foi para mim surpresa, mas muito me agradou porque me situou em raízes comuns a referência a Paul Ricoeur: “Nestas considerações, deixo-me inspirar pelo pensamento de Paul Ricoeur, «Le socius et le prochain», in: Idem, Histoire et vérité (Paris 1967), 113-127. [nota80]
Francisco reservou o último parágrafo da Encíclica (n.286) para fazer uma confidência: ”Neste espaço de reflexão sobre a fraternidade universal, senti-me motivado especialmente por São Francisco de Assis e também por outros irmãos que não são católicos: Martin Luther King, Desmond Tutu, Mahatma Mohandas Gandhi e muitos outros. Mas quero terminar lembrando uma outra pessoa de profunda fé, que, a partir da sua intensa experiência de Deus, realizou um caminho de transformação até se sentir irmão de todos. Refiro-me ao Beato Carlos de Foucauld.”
Aqui, perdoem-me, não consegui vencer a emoção. Também me senti obrigado a uma evocação pessoal: Tenho menos dois anos e meio que o Papa. Distantes no espaço, vivemos próximos no tempo. Vivemos os mesmos tempos da Igreja e idênticas referências culturais. Também eu no meu percurso cultural e espiritual me encontrei nos seus escritos e nos dos seus discípulos com a personalidade e a aventura espiritual de Charles de Foucauld. Por ele fiquei marcado “O seu ideal duma entrega total a Deus encaminhou-o para uma identificação com os últimos, os mais abandonados no interior do deserto africano. Naquele contexto, afloravam os seus desejos de sentir todo o ser humano como um irmão,[286] e pedia a um amigo: «Peça a Deus que eu seja realmente o irmão de todos».[287] Enfim queria ser «o irmão universal».[288]”
Octávio Gil Morgadinho
Artigo da edição de novembro do Jornal da Família