O século do essencial

“O século XXI poderá ser o século do essencial”, escreve Carlos Campos na rubrica “A Terra e os Homens” do mês de janeiro do Jornal da Família . Um artigo onde deixa pistas para vivermos com aquilo que é realmente essencial e nos faz felizes.

O século passado foi aquele em que mais se afirmaram as tendências consumistas. Com a evolução dos mercados e da produção em série, sobretudo a partir da segunda metade do século XX, as pessoas deram conta de que estavam rodeadas de uma oferta abundante e convidativa. Comprar, consumir, ter – passaram a ser desejos comuns, cuja concretização era identificada com a felicidade. Antes de chegar ao fim, o século XX trouxe algumas descobertas. Desde logo, descobriu-se que a ideia de uma “sociedade abundante” não passava de uma ilusão. A oferta abundante nas lojas e na publicidade escondia profundas desigualdades sociais, quer em cada país, quer à escala global. Descobriu-se também que apesar do progresso das capacidades de produção, a economia não era tão saudável quanto se pensava. Mesmo os países “mais desenvolvidos” enfrentaram crises estruturais. Entretanto, com o aparecimento dos movimentos ambientalistas, a opinião pública começa a dar conta da poluição, da delapidação rápida de recursos naturais, da ameaça a espécies em risco. A “Declaração de Estocolmo” (junho de 1972) marca a passagem da era “eco-activista” para a era da incorporação de normas ambientais nas ordens jurídicas. Em 1987, o Relatório Brundtland – Our Common Future  (O Nosso Futuro Comum) colocou o conceito de “desenvolvimento sustentável” na agenda política , definindo-o como “o desenvolvimento que satisfaz as necessidades do presente sem comprometer a capacidade das gerações futuras para satisfazer as suas próprias necessidades”.

Finalmente, ao darem conta de que a abundância era apenas uma ilusão, as pessoas descobrem também que o “prazer do consumo” e a “terapia das compras” não trazem felicidade. Deixamo-nos convencer (frequentemente por mero impulso) que a compra de uma coisa nos vai deixar felizes. Mas pouco tempo depois de a termos, descobrirmos que, em vez de nos sentirmos bem, apenas sentimos… vontade de comprar outra coisa. É um círculo vicioso similar ao jogo que, em vez de divertir, vicia. Às vezes, isto acontece repetidamente na mesma ida às compras em que o cenário de produtos coloridos foi organizado (há técnicas especiais para isso) para estimular a “compra por impulso”. Por isso, as pessoas sensatas habituaram-se a levar a consigo a sua lista de compras (aquilo de que realmente precisam) e a limitar as compras do que não está na lista. Essas pessoas são as que sabem que o comprar e ter não traz felicidade, traz apenas o desejo de comprar e ter mais. É uma dinâmica de ilusão – frustração, bem ilustrada na canção (I can’t get no) Satisfactionescrita por Mick Jagger e Keith Richards (Rolling Stones) em meados de 1965.

Tivemos meio século para aprofundar todas estas descobertas e desilusões. Conseguiremos libertar-nos dessa dinâmica de dependência do consumo? O século XXI poderá ser o século do essencial. Em vez de enchermos o carro de compras (real ou virtual), deveremos viver com o que é realmente importante para nos fazer felizes. Mais do que a satisfação de necessidades (sempre temporária), o que procuramos é a felicidade. A sobriedade não foi uma caraterística do século passado, mas é seguramente um bom conselho para quem quer percorrer o caminho da felicidade: não levar bagagem a mais. Algumas ideias para esse caminho:

  1. A felicidade começa por ser a possibilidade de estar bem consigo próprio, o que significa escolher, procurar e preservar o essencial.  “É possível ter necessidade de pouco e viver muito, sobretudo quando se é capaz de dar espaço a outros prazeres, encontrando satisfação nos encontros fraternos, no serviço, na frutificação dos próprios carismas, na música e na arte, no contacto com a natureza, na oração” (Papa Francisco, Laudato Sí, 223). A vida é um caminho de Santiago e só se chega ao fim com uma mochila sóbria. A riqueza está no itinerário e não na mochila.
  1. Estar bem com os outros, porque ninguém é feliz sozinho. Estar bem com os outros é a predisposição para a partilha, para a solidariedade, para o amor. É preciso que os outros tenham também o seu essencial. Os outros são o do prédio, do bairro, do país, do mundo. Enquanto houver fome, doença, pobreza, discriminação, perseguição, guerra – haverá caminho a percorrer. E todos teremos a oportunidade de ser bom samaritano nesse caminho (quer em ação pessoal, quer na escolha dos políticos).
  1. A felicidade não se reduz a uma fugaz satisfação. Só existe verdadeiramente se for durável. Por isso há que estar bem com o futuro, o que significa saber preservar os bens e os recursos para garantir a “capacidade das gerações futuras para satisfazer as suas próprias necessidades” (Relatório Brundtland). Poupança,previdênciasustentabilidade, são exigências pessoais e comunitárias.
  1. Do mesmo modo, há que estar bem com a natureza, porque ela é a única garantia material do futuro. Só há uma Terra e temos de a preservar para as gerações vindouras, em estado de poderem tirar dela o mesmo proveito que nós. A sustentabilidade ambiental traduz-se numa solidariedade entre geraçõese implica atitudes responsáveis: evitar a poluição, a exaustão de recursos naturais e a extinção de espécies. O ambiente terá por isso eu ser um tema prioritário nas agendas educativas do século XXI. 
  1. Quem tem o dom da fé só se sente feliz ao estar bem com Deus, em tudo o que isso implica nos domínios da espiritualidade pessoal, da oração, da gratidão, da capacidade para ouvir, da entrega e talvez mesmo do sacrifício. “Agora, vemos como num espelho, de maneira confusa; depois veremos face a face” (1Cor 13,12), mas o poder e a beleza de Deus não está apenas no fim. Ele é o nosso companheiro de viagem, se usarmos a nossa liberdade para aceitar a Sua companhia.

Na senda da felicidade, nem a mochila tem de ser pesada, nem o caminho é longo demais. A extensão do caminho da felicidade só depende da nossa ambição.

Carlos Campos
Artigo da edição de janeiro do Jornal da Família

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