Quando estas linhas chegarem a vossas casas a maioria de nós já estará, de novo, envolvida nas rotinas de mais um ano. Já se nota claramente que a ‘acalmia’ dos meses de julho e agosto, bem como de inícios de setembro, ficou para trás, as ruas têm a movimentação típica dos ‘meses normais’ de trabalho, as escolas voltaram a encher-se de alunos. Tudo parece ter voltado ao normal que estamos habituados. Mas apesar de aparentar ser assim, sabemos bem, que se trata de uma normalidade bem diferente. Os sons da guerra continuam a fazer-se ouvir e não é só na Ucrânia, ainda que seja essa guerra que mais é ‘vista’ e ‘ouvida’. As consequências deste absurdo e desta estupidez imoral (confesso que me apetecia utilizar palavras bem mais duras) já se fazem sentir por toda a parte, seja de um modo direto ou indireto e, como sempre, são os mais indefesos aqueles que mais sofrem. A pandemia, apesar de já nos temos de certo modo habituado a ela, ainda não foi completamente debelada e, provavelmente, voltará a sentir-se com mais força no inverno que se aproxima. Aliás, são bastantes as vozes que começam a chamar a atenção para o crescer das dificuldades nos tempos mais próximos. Não quero ser alarmista, mas temos de nos preparar para um inverno ‘desafiante’.
Nessa linha, parece-me ser muito importante o desenvolvimento de algumas ações para, de um modo pró-ativo, podermos responder a esses desafios. A modo de partilha, aponto três ações que sustento em três verbos.
Com o primeiro, empalavrar (talvez não seja muito correto do ponto de vista do português, mas para mim traduz bem o que julgo ser necessário fazer), quero apontar o exercício de leitura da realidade, tentando discernir nela os sinais dos tempos. Ou seja, trata-se de ter a capacidade de ler bem a história a partir do Evangelho, procurando, neste, aquelas ‘palavras’ que nos convidem a transformar essa mesma realidade. Verdadeiramente estou convencido que neste campo as comunidades cristãs e, dentro delas as famílias, têm um papel importantíssimo a desempenhar. Tenho-o aqui referido muitíssimas vezes, volto a fazê-lo agora, é urgente a ousadia da construção de uma história diferente. O amanhã terá mesmo de ser construído a partir de uma experiência de fraternidade mundial, bem ao jeito do que nos é proposto na Fratelii Tutti. As famílias e as comunidades cristãs, como já referido, têm mesmo de ser aquele tempo e aquele espaço onde aprender a fazer e a consolidar a experiência da fraternidade. Nelas se devem aprender a dizer e a viver aquelas palavras com que se edifica essa mesma experiência. Os desafios que vamos enfrentar podem ser oportunidade para ensaiarmos os caminhos diferentes.
Com o segundo, cuidar, aponto um exercício que me parece absolutamente essencial. Cuidar de cada um, cuidar dos outros, cudar da casa comum, cuidar da comunidade, cuidar da paz, cuidar do bem comum, cuidar dos mais frágeis, cuidar dos pobres (e poderia continuar a acrescentar a lista) são ações humanizadoras. Este exercício parece-me tão fundamental que me atrevo a dizer que dele dependerá, em grande medida, a ‘estatura da humanidade’ que queremos ser. Cuidar é ação humanizadora tanto para o que cuida, como para o que é cuidado. Neste sentido, todos somos chamados a cuidar e todos somos necessitados de cuidado e, aí, tornamo-nos (ou não) mais humanos, melhores pessoas. As dificuldades que somos chamados a enfrentar pedem-nos que estejamos muito atentos para que ninguém ‘fique para trás’ ou seja ‘descartado’, pedem-nos a ousadia do cuidado. Também a este nível o papel das comunidades e famílias é indispensável. Nelas se faz essa experiência primeira de ser cuidado e de cuidar. Também por isso elas são realidades indispensáveis à humanidade.
Finalmente, com o terceiro verbo, esperançar (também este pode não ser muito correto do ponto de vista do português, ainda que também ele me pareça traduzir bem o que quero destacar), aponto a necessidade de desenvolver ações e atitudes que sustentem e promovam a esperança. Como é óbvio, não me refiro à passividade de quem espera que as coisas possam acontecer sem fazer nada por isso. Pelo contrário, refiro-me a aquelas ações e atitudes que, com coragem, são capazes de querer um futuro diferente, que querem esperar um futuro diferente, fazendo tudo o que está ao seu alcance para que esse futuro, que ainda não é, possa, no entanto, começar a ser preparado, possa começar a ser, influenciando já, de certo modo, os nossos dias. A esperança inaugurada pela experiência vital de Jesus Cristo é, neste sentido, sustento fundamental para o nosso caminhar enquanto humanidade. Também neste âmbito as comunidades e as famílias são chamadas a ser promotoras do compromisso com a esperança.
Sabemos que os próximos tempos não serão fáceis, mas também sabemos que no Evangelho de Jesus Cristo podemos encontrar aquelas palavras que nos ajudem a olhar melhor a realidade para dela melhor podermos cuidar, de modo a transformá-la na linha da esperança que habita o nosso coração.
Juan Ambrosio
Artigo da edição de outubro de 2022 do Jornal da Família