Os nossos ‘maiores’

A sociedade conseguiu aumentar a esperança média de vida, mas ainda não se organizou para dar resposta a essa realidade. “O que fazer com os nossos ‘maiores’?” é a pergunta deixada por Juan Ambrosio que convida à reflexão.

“Um homem recusa toda a ajuda da sua filha à medida que vai envelhecendo. Ele começa a duvidar dos entes queridos, da sua própria mente e da própria realidade, ao tentar compreender as mudanças que estão acontecendo na sua vida”

É com estas palavras que é apresentado o filme The Father (O Pai) que muito recentemente tive a oportunidade de ver. Não escondo o grande impacto que o mesmo teve em mim, ao fazer-me reviver a tão recente experiência da morte do meu pai. Também ele recusou tantas vezes a ajuda, por se sentir ainda muito capaz de cuidar de si mesmo. Também ele começou a viver numa realidade em que os tempos, os espaços, os acontecimentos se misturavam, dando origem a uma outra realidade que, apesar de não coincidir com aquela que conhecíamos, era tão real para ele. Também ele passou por um processo demencial que, pouco a pouco, o foi fazendo deixar de reconhecer as pessoas que mais amava. Finalmente também ele acabou por se deixar conduzir, se bem que, julgo, nunca o tenha feito por querer o mesmo que nós julgávamos ser o melhor para ele.

Tantas memórias que fizeram sentir de uma maneira ainda mais viva a saudade, mas ao mesmo tempo a profunda gratidão por todos aqueles que me ajudaram a tratar dele.

Mas se isto é importante, e para mim foi-o verdadeiramente, o motivo pelo qual o refiro vai muito para além da minha própria experiência pessoal. No filme, dirigido pelo realizador Francês Florian Zeller e tão brilhantemente protagonizado pelo ator Anthony Hopkins – ganhou mesmo um Óscar –, levanta-se a questão de como estão as nossas sociedades preparadas para lidar com situações semelhantes. Como viver estas situações mantendo a dignidade de todos quanto nelas estão envolvidos? E em bom rigor, talvez tenhamos mesmo de reconhecer que, para além dos familiares mais próximos, todos estamos envolvidos enquanto sociedade e enquanto humanidade.

Esta será, disso não tenho a menor dúvida, uma realidade cada vez mais presente. Fomos, e bem, capazes de edificar sociedades em que as pessoas conseguem viver durante muito mais tempo, mas não estamos a ser capazes de nos organizarmos de modo a darmos todas as respostas necessárias a essa realidade. Com relativa facilidade todos percebemos as enormes dificuldades que existem ao nível das infraestruturas para acompanhar os mais idosos. São poucas e muitas a um preço só ao alcance de algumas bolsas. Sei bem que o ideal é sempre manter as pessoas que se encontram em situações semelhantes naqueles que podemos apelidar serem os seus ambientes, mas também sei bem que, em muitos casos, as necessidades de cuidado são tais, que se requer um acompanhamento mais especializado, indo muito para além das reais capacidades das famílias.

Sei bem, também, que este é um problema que se faz sentir de um modo mais evidente na nossa cultura, pois noutras geografias a questão, ainda que também exista, é olhada de outro modo. Mas saber isto, não diminui, em nada, a necessidade que temos de agir bem.

O que fazer e como fazer com os nossos ‘maiores’? Esta expressão, na minha língua materna evoca tantos ecos de uma profunda humanidade. Os nossos ‘maiores’ não são sobras, não são gente já a ficar fora da validade. E se vão perdendo capacidades, físicas e mentais, têm em si, no entanto, a riqueza da tessitura da vida, tessitura da qual também nós fazemos parte e que também faz parte de nós. A maneira como os soubermos dignificar dirá muito acerca da nossa própria dignidade.

Não quero ser ingénuo ao ponto de não reconhecer as enormes dificuldades que temos de enfrentar, mas sei como há gestos de carinho que nos fazem ser mais e melhor, mesmo que aqueles que os recebam já não nos reconheçam, já não saibam quem somos e, mesmo, porventura, já não saibam quem são. Não tenho soluções fáceis, também eu tive de andar à procura delas quando foi necessário, mas há uma coisa que me parece evidente: esses gestos de carinhos para com os nossos ‘maiores’ são absolutamente essenciais para eles e para nós. Se não os tivermos correremos o sério risco de nos esquecermos verdadeiramente de quem somos.

O tempo de Natal que vamos viver será certamente uma riquíssima oportunidade para intensificarmos os nossos gestos de cuidado e carinho pelos nossos ‘maiores’. Saibamos nós aproveitar este tempo em que celebramos o facto de Deus ter querido viver a nossa vida, para perceber o imenso tesouro que ela encerra em todas as suas fases.

Juan Ambrosio
Artigo da edição de dezembro de 2022 do Jornal da Família

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