Acompanhei o desenrolar da preparação do Concílio Vaticano II e as diligências do seu lançamento e implantação com as informações de duas publicações francesas sob a responsabilidade de um teólogo, o padre dominicano Yves Congar e o jornalista Henri Fesquet. Estive assim nos bastidores da contestação com que foram recebidas as propostas de constituição das comissões e da elaboração e discussão dos documentos conciliares. Graças sobretudo à intervenção significativa dos episcopados francês e alemão e o acompanhamento dos teólogos que os assistiam, o Concílio não se limitou a confirmar a documentação preparada previamente pela Cúria Romana mas deu voz ao episcopado da Igreja parar tornar efetivo o “sentido da fé da Igreja” obtido através da participação dos bispos que, de facto, representavam uma Igreja espalhada por todo o mundo com as tradições criadas pela experiência do passado e as inovações reclamadas pelas igrejas surgidas da missionação e integração das novas culturas.
Só mais tarde vim a conhecer a participação efetiva do teólogo Joseph Ratzingher neste processo quando a revelou no último encontro com o clero de Roma depois de ter já anunciado a sua renúncia (14 de vevereiro de 2013):
“Em 1959, tinha sido nomeado professor da Universidade de Bonn, onde fazem seus estudos os alunos, os seminaristas da diocese de Colónia e de outras dioceses vizinhas. Foi assim que entrei em contacto com o Cardeal de Colónia: o Cardeal Frings. O Cardeal Siri, de Génova, – no ano 1961, acho eu – organizou uma série de conferências sobre o Concílio feitas por vários Cardeais europeus, e convidara também o Arcebispo de Colónia para realizar uma das conferências que tinha por título: O Concílio e o mundo do pensamento moderno. O Cardeal convidou-me – o mais novo dos professores – para lhe redigir um projeto; ele gostou do projeto, e propôs ao povo de Génova o texto como eu o escrevera.” O Papa João teve conhecimento e convocou o Card. Frings para lhe manifestar diretamente o seu acordo: “disse coisas que eu queria dizer, mas não tinha encontrado as palavras”. O Cardeal ficou tranquilo e convidou Ratzinger para o acompanhar como consultor teológico que foi agregado aos peritos oficiais do Concílio.
Durante o Concílio e depois Joseph Ratzinger continuou a divulgar e comentar especialmente nas suas publicações as novidades e consequências práticas da Constituição sobre a Igreja “Lumen Gentium”. De perito passou a agente na Igreja assumindo tarefas de responsabilidade pastoral na aplicação das resoluções do Concílio. Aqui mostrou a sua coragem e sentido de responsabilidade. Uma coisa é ser perito na teologia outra coisa é ser pastor, ser guia de uma comunidade cristã, pastor da Igreja universal como ele foi. Foi tudo isso com uma preocupação fundamental da verdade na caridade. Foi na dupla missão de teólogo que reflete e pastor que aplica aquilo que crê acerca da Igreja que eu acompanhei com admiração o percurso do teólogo Joseph Ratzinger e Papa Bento XVI.
A 25 de março de 1977 o Papa Paulo VI nomeou-o Arcebispo de Munster e Freising e criou-o Cardeal no Consistório de 27 de junho de 1977.
A 25 de novembro de 1981 João Paulo II nomeou-o Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé. Foi também Presidente da Pontifícia Comissão Bíblica e da Comissão Teológica Internacional. Presidente da Comissão para a Preparação do Catecismo da Igreja Católica. O exercício das suas funções impunha-lhe a salvaguarda da verdade da doutrina e da unidade da Igreja, a tomada de posição perante teologias, correntes de opinião e práticas de grupo. A sua atuação nesta “posição incómoda”, por sua natureza discutível, tornou-se de facto muito discutida e polémica. É muito difícil, nos nossos tempos, conciliar autoridade e liberdade, verdade e opinião, unidade e pluralismo. Ratzinger justificou sempre as suas decisões com o objetivo de garantir a identidade da Igreja e de encontrar caminhos de conciliação e diálogo por entre os escolhos da intransigência e as ameaças de rotura.
Ao assumir o magistério papal com o nome de Bento XVI, em simultâneo com a segurança e equilíbrio das suas posições, manteve uma atitude recetiva e dialogante no diagnóstico das situações e na tomada de decisões.
Recordo o encontro com os padres do Vale de Aosta, em 25 de julho de 2005. Aceitou dialogar e responder às questões por eles postas: as vocações sacerdotais e religiosas, a comunhão aos fiéis divorciados e novamente casados, dos limites da ação da Igreja e da comunicação da sua mensagem, do próprio ministério papal.
As respostas do Papa acentuam os limites da ação da Igreja a todos os níveis, a necessidade do diálogo e do trabalho em comum na atividade pastoral, do respeito pelas pessoas e suas situações. A Igreja faz uma leitura positiva do mundo atual e das suas dinâmicas, aceitando os seus desafios e reconhecendo as suas resistências. Deve conciliar a exigência dos princípios e das regras com a compreensão das pessoas.
Abordou o problema dos divorciados recasados, revelando modestamente suas preocupações e dúvidas, as tentativas e o fracasso em alcançar a solução que ele desejava: “Pessoalmente pensava assim, mas dos debates que tivemos compreendi que o problema é muito difícil e ainda deve ser aprofundado”. E conclui: “o Papa não é um oráculo, é infalível em situações raríssimas, como sabemos. Portanto, partilho convosco estas perguntas, estas questões.”
Termino com a apreciação que, em estilo coloquial e também sem laivos dogmáticos – ele diz: “parece-me” – Bento XVI faz do ministério papal que desempenha: “Parece-me que é este o ministério fundamental do Sucessor de Pedro: garantir esta catolicidade que implica multiplicidade, diversidade, riqueza de culturas, respeito pelas diversidades e que, ao mesmo tempo, exclui a absolutização e une todos, obriga-os a abrir-se, a sair da absolutização do próprio ser para se encontrar na unidade da família de Deus que o Senhor quis e para a qual garante o Sucessor de Pedro, como unidade na diversidade.” (Roma 26.02.09)
Octávio Morgadinho
Artigo da edição de fevereiro do Jornal da Família