Celebramos a Páscoa, o mistério da morte e ressurreição de Jesus Cristo, fundamento da fé da Igreja, fonte da vida nova de todos os batizados. Da ressurreição de Cristo, data o envio dos discípulos “pelo mundo inteiro” a anunciar a “Boa Notícia a toda humanidade” (Marc. 16, 15; Mat 28, 18-20) e o início da Igreja como comunidade de discípulos e continuadora permanente dessa missão.
A ressurreição é o núcleo central da pregação de S. Paulo (conf. I Cor. 15, 3segs,). O conteúdo do mistério da ressurreição é objeto de fé. As circunstâncias e reações dos que viveram a experiência da ressurreição de Jesus são factos históricos. A verificação do túmulo vazio, as reações e transformações operadas naqueles que se afirmaram testemunhas da ressurreição são factos verificados. Paulo confirma as aparições do Ressuscitado como factos históricos. Identifica muitas das testemunhas, inclui-se entre elas e conclui: “Se Cristo não ressuscitou… é vã a nossa fé”, Ib. 15,14… a vossa fé é ilusória (17)”. Paulo replica o mistério da ressurreição de Cristo na fé na ressurreição dos mortos de que é garantia, como argumenta no capítulo 15 da 1ª Epístola aos Coríntios.
A fé na ressurreição é fonte de vida nova nos crentes. “Todos vós, que fostes batizados em Cristo, revestistes-vos de Cristo mediante a fé (Gal. 3, 27-28). Na Epístola aos Romanos Paulo aborda o mistério da vida nova conferida pelo batismo: o batizado revive em si pelo sacramento o mistério da morte e ressurreição de Cristo. O Apóstolo interpreta nesse sentido o simbolismo do rito: a imersão significa a morte para o pecado; a emersão, a ressurreição para a vida nova em Cristo. O batismo opera uma verdadeira identificação com o mistério pascal de Cristo, com Ele morrendo misticamente para o pecado e ressuscitando para uma vida nova semelhante à Sua que transparece nas suas ações, na vida real: “Pelo batismo fomos sepultados com Ele na morte, para que, tal como Cristo foi ressuscitado de entre os mortos pela glória do Pai, também nós caminhemos numa vida nova. De facto, se estamos integrados nele por uma morte idêntica à sua, também o estaremos pela sua ressurreição.” […] Assim vós também: considerai-vos mortos para o pecado, mas vivos para Deus, em Cristo Jesus.” Nas epístolas aos Romanos e aos Colossenses Paulo explica concretamente as manifestações dessa vida nova em Cristo (Conf. Rom 6, 4-11; Col. 3, 1-17). A fé incarna-se numa “vida nova”, à semelhança de Cristo.
A ressurreição de Cristo é “princípio e fonte da ressurreição futura”, e é igualmente comunicação da vida glorificada a todos aqueles que se unem a Cristo pela fé e pelo batismo. S. Paulo afirma claramente a relação entre a ressurreição de Cristo, a participação nela por ação do Espírito de todos os batizados e a ressurreição final dos corpos: “Se Cristo está em vós, o corpo está morto por causa do pecado, e o Espírito é vida por causa da justiça. Se O Espírito daquele que ressuscitou Jesus habita em vós, Aquele que ressuscitou Cristo dos mortos também dará vida aos vossos corpos mortais, por meio do seu Espírito que habita em vós” (Rm 8, 10-11). A vida nova instaurada pela ressurreição de Cristo é partilhada por aqueles que n’Ele são batizados e concretizada numa prática conforme à Palavra do Evangelho e ao exemplo de Jesus Cristo, na esperança da manifestação da plenitude dessa vida, na comunhão com Deus, na ressurreição futura.
A partir do sec. II, desenvolveu-se na Igreja o processo celebrativo da Páscoa cristã na sua vertente mistagógica. A Festa da Páscoa é memorial perene que atualiza e torna eficaz no presente a realidade salvífica do mistério pascal da morte e ressurreição do Senhor que ocorreu uma só vez na história, mas se repercute continuamente no presente, no hoje do mistério litúrgico. Nesse hoje do mistério pascal se enquadra a eucaristia, ela própria antecipação – “…Corpo que será entregue…”, “…Sangue que será derramado…” – e memorial – “Fazei isto em memória de Mim”, presença. “Em Cristo tudo se cumpriu, mas por outro lado tudo deve cumprir-se, isto é, a realidade salvífica de Deus em Cristo deve cumprir-se, de modo histórico-sacramental, em nós, no tempo da igreja” M. Augé, O Ano Litúrgico, p. 23-4).
Paralelamente desenvolveu-se um processo prático de caráter ascético ligado à teologia pascal do Batismo como passagem da “morte” do pecado” para a “vida nova” em Cristo que corresponde ao anúncio do Reino de Deus nos sinópticos: “Arrependei-vos e acreditai no Evangelho” (Mc 1, 15), “Convertei-vos, está próximo o reino dos céus” (Mt 4, 17). Os mesmos sinópticos colocam este anúncio depois do retiro de “quarenta dias” no deserto e as tentações de Jesus. Este quadro evangélico não foi estranho à evolução da prática litúrgica mistagógica, penitencial e ascética da Páscoa, Tríduo Pascal, e Quaresma considerada na dupla perspetiva de Mistério salvífico da Morte e Ressurreição de Cristo e participação de todo o crente nesses mistérios pelo batismo. O batismo é o culminar do processo de fé: conhecimento e aceitação do Evangelho e a conversão das “obras mortas” do pecado para a vida nova em Cristo. Desde sempre a Igreja associou a Vigília Pascal à celebração do Batismo: neste Sacramento realiza-se aquele grande mistério pelo qual o homem morre para o pecado, é tornado participante da vida nova em Cristo Ressuscitado e recebe o mesmo Espírito de Deus que ressuscitou Jesus dos mortos (cf. Rm 8, 11).
Este dom gratuito deve ser reavivado sempre na pessoa de cada batizado. A Quaresma ofereceu-nos um percurso análogo ao catecumenato, que para os cristãos da Igreja antiga, assim como também para os catecúmenos de hoje, é uma escola insubstituível de fé e de vida cristã: na verdade eles vivem o Batismo como decisão radical da sua existência.
Na verdade nós os cristãos, celebrando a Páscoa atualizamos a ressurreição de Cristo e dela participamos, ressuscitando do Ele para uma vida nova semelhante à Sua.
Octávio Morgadinho
Artigo da edição de abril 2023 do Jornal da Família