O motorista de táxi a quem pedi para me conduzir à residência de idosos onde estou alojado foi implacável no comentário: “A casa de onde apenas se sai para o cemitério!…”
Não foi essa a intenção que me levou a recolher-me numa “residência de idosos” ao retirar-me das “tarefas executivas” da vida ativa. Considero a morte não apenas o termo da vida mas o momento em que concluímos a nossa realização humana, o momento em que definimos de vez o nosso perfil pessoal, em que fixamos a plenitude da nossa vida terrena. A Igreja assinala para memória dos santos canonizados o dia do seu falecimento, o dia em que, terminando o seu percurso terreno, completaram a definição da sua personalidade espiritual, testemunho para os vivos e esperança própria de escutar a palavra final do Julgamento: “Vem, bendito de meu Pai!”
É nesse sentido que falo aqui de “aprender a morrer”: Aprender a optar por aquilo que é definitivo e subalternizar aquilo que é passageiro, a optar pelos valores que deixam rasto na vida das pessoas, daquela “carta escrita não com tinta, mas com o Espírito do Deus vivo, não em tábuas de pedra, mas nas tábuas de carne do coração” de que fala S. Paulo (2 Coríntios, 3, 3). Algumas vezes nas minhas opções académicas esta reflexão contou: escrever papéis que na melhor das hipóteses poucos iriam ler ou ir escutando as pessoas e ajudá-las a construir as suas vidas, a responder aos apelos de Deus nas situações em que as vão definindo. E dei conta que essa opção não foi inútil. Aprender a morrer não é para mim abdicar da vida, é valorizar o património nela adquirido pelo estudo e pela experiência a favor dos outros. Nesse sentido tenho correspondido à recomendação “Escreva… Deixe o seu testemunho!” Reconheço que poderia fazer mais…. Creio que as questões básicas do diálogo entre gerações também passam por aí.
No “aprender a morrer” incluo aceitar a perda da visibilidade, do protagonismo quando uma decisão minha ou alheia determinou o afastamento de funções, tarefas e lugares que desempenhei. De facto, a vida impôs-me constantes mudanças por decisões minhas, por intervenções ou circunstâncias alheias, por reação a essas circunstâncias que me obrigaram a mudar a trajetória para manter o meu rumo. Escolher é sempre rejeitar hipóteses próprias ou impostas por outrem para seguir as que decidimos seguir. Muitas vezes definitivamente. É morrer para uma certa forma de vida possível. Procurei adaptar-me à mudança, rejeitando as hipóteses que foram neutralizadas e concretizar as opções possíveis para continuar a rota dentro do rumo decidido.
A relação com o semelhante na diversidade das suas concretizações é componente essencial do viver humano, da minha forma de ser e estar. Com meu pai aprendi a não considerar ninguém como inimigo. “Eu não tenho inimigos!” – repetia ele frequentemente. E quando lhe pedi o segredo, respondeu-me: “houve gente que me fez mal ou que não me foi favorável. Se alguém me considerou seu inimigo foi opção sua. Eu nunca considerei ninguém como meu inimigo!” Esse é o sentido da afirmação “não tenho inimigos” que adotei como norma de vida, como processo de morte para o egoísmo que implica a convivência fraterna em sociedade.
Sempre cultivei a amizade. Mantenho amigos desde a infância. Continuo amizades que iniciei com companheiros de escola primária, do seminário, nas várias situações que compartilhei. Ainda continuo a receber telefonemas dos colegas da tropa, em situação de guerra. Ainda continuo a reativar relações de amizades que permaneceram, apesar de interrompidos os contactos dezenas de anos. Interrompidas as relações, não foi interrompida a amizade. Reapareceram com o mesmo vigor e capacidade de adaptação às circunstâncias presentes. Professo a crença na “amizade para sempre”. Vejo a amizade como relação de reciprocidade do “querer bem”. Ser amigo de alguém inclui a expectativa que esse alguém seja meu amigo e me retribua a sua amizade. A amizade depende da liberdade dos amigos. “Ser amigo de alguém” implica a correspondência entre ao meu “querer bem” ao meu amigo e o “querer bem” do meu amigo relativamente a mim. Costumo dizer “amo a liberdade de quem amo”, considerando a amizade esse compromisso livre recíproco que gera a expectativa de correspondência mútua entre os amigos.
Neste contexto, considero o “aprender a morrer” como a educação continua do meu “querer bem” desinteressado ao outro independentemente da sua resposta. Nesse sentido digo: “Ser amigo de alguém depende de mim” e “ser considerado amigo de alguém” depende da liberdade desse amigo. “Aprender a morrer” no domínio da amizade é para mim manter a amizade que foi estabelecida para sempre e respeitar a atitude contrária do outro.
Tenho a experiência de sofrer a “morte” que o amigo nos inflige ao decidir cortar as relações profundas que entre nós existiram, fugindo a qualquer contacto ou explicação. Aqui o meu “aprender a morrer” não é aceitar “estar morto”, mas continuar a decisão de “ser amigo” de quem decidiu que eu “estou morto”, e continuar a minha amizade. Como relativamente aos inimigos eu não posso ser inimigo de quem me considera seu inimigo, também relativamente aos meus amigos que decidiram renegar essa amizade e me consideram de facto “morto” para eles eu não os posso considerar “mortos” para mim. Respeito a sua decisão de cortar os sintomas de qualquer amizade para comigo, mas continuo a ser o amigo dos pontos mais altos e profundos da nossa amizade. É mais uma forma de morrer para mim mesmo para viver como o cristão que sou.
Octávio Morgadinho
Artigo da edição de junho de 2023 do Jornal da Família