Haverá anos letivos tranquilos?

Um olhar pelo passado para constatar que a instabilidade do presente não é algo novo. E em matéria de educação, mais do que lamentar a “instabilidade ” do arranque de mais um ano letivo, há que transmitir “serenidade e confiança às crianças e aos jovens”. O artigo de Jorge Cotovio na edição de novembro do Jornal da Família.

Não, não há. E mais: até será bom não haver. Se queremos que a escola eduque e prepare para a vida, ela deve refletir o que se passa na vida. E o que se passa maioritariamente na vida são preocupações, lutas, tensões, contrariedades, frustrações, sofrimentos. Como a Gaudium et Spes sintetiza tão bem o que se passa na vida humana, logo a começar: «As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos aqueles que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo»!

Olhemos para o nosso mundo, por exemplo nos últimos anos. Apesar das alegrias e as esperanças das festas e convívios da “passagem de ano”, o que é que tivemos mais marcante? A par de factos mais ou menos esperados – inflação, aumentos brutais do preço dos combustíveis, aumentos exponenciais dos juros do crédito à habitação, aumento gradual de tensões em alguns países, a corrupção, os males no SNS, entre outros – tivemos factos inesperados e impensáveis: a crise da dívida soberana (que nos apanhou em cheio de 2011 a 2015), a pandemia da COVID19, a guerra na Ucrânia e agora a guerra no médio-oriente (com os hediondos crimes lá cometidos). “Para mal dos nossos pecados”, a imprevisibilidade, a corrupção, a violência e o desrespeito pela vida humana têm marcado este século XXI.

Com a CMTV e as “notícias ao minuto” a acompanhar tudo ao segundo, sobretudo o que corre mal, não admira que o clima que se vive seja de muita intranquilidade e ansiedade.

Obviamente que estas coisas saltam para a escola. Perante o aumento do custo de vida, reivindicam os professores e funcionários e surgem as greves. Entretanto, os edifícios envelhecem e nem sempre há dinheiro e arte para os reparar convenientemente. Com toda esta instabilidade societária, os pais ficam mais impacientes com a escola e os alunos mais cruéis uns com os outros (dá para pensar o aumento significativo dos atos de bullying nas escolas, como recente relatório refere). “É uma desgraça”, dizem os mais antigos; “no meu tempo não era assim”… É claro que não estão a dizer a verdade. Sempre foi (mais ou menos) assim. O mundo, desde que foi habitado pelos humanos, sempre foi salpicado por manchas de sangue, de ódio, de ambição, de luta, de poder. A “brincar”, lá vou pregando que a culpa de tudo isto foi do Caim, pois logo no início da história da salvação apunhalou e matou o irmão… Terão sido profundamente afetados pelos pais, que desobedeceram a Deus… E depois, e agora a falar mais a sério, há quem diga que as tensões ainda hoje bem sentidas na charneira do planeta – a “Palestina” – são culpa de Isaac e de Ismael, quiçá fruto de alguma desorganização da vida familiar de Abraão (como a história do Povo de Deus, no Antigo Testamento, é tão “marcante” passados 3 ou 4 milénios!).

Voltemos à escola. Na análise organizacional, a Comunidade Educativa também é caraterizada por “arena política”. É-a, muitas vezes. E, curiosamente, também é caraterizada por “caixote do lixo” (garbage can model) porque tudo vai parar à escola, e lá se misturam problemas, soluções, hesitações, decisões e indecisões. É uma espécie de “anarquia organizada”, como referem vários autores… Mas sempre terá sido assim.

Não tenhamos ilusões: não há anos letivos perfeitos, serenos, tranquilos, sem faltas de professores, sem professores com pouco jeito para ensinar, sem recursos limitados, sem alunos malcomportados, sem pais revoltados, sem polémicas.

Portanto, ao invés de lamentarmos a instabilidade do começo deste novo ano letivo, na sequência das turbulências do ano anterior, olhemos com tranquilidade e esperança as perturbações existentes, e consideremo-las naturais. E demos graças a Deus pela escola que temos, pelo nível de competência e responsabilidade da maioria nossos professores (e funcionários), pela organização do sistema escolar. Pessoalmente, devo muito, muito mesmo à escola que me ajudou a crescer em todas as dimensões (na altura, ainda era obrigatória a frequência da disciplina de “Religião e Moral”). Uma escola com turmas grandes (quase 40 alunos em alguns anos), coexistindo duas classes no 1.º ciclo (e na cidade!), com alguns professores que “metiam medo” (aos quais nem ousávamos pedir esclarecimento de dúvidas) e outros que faltavam muitas vezes (como sabiam bem esses “feriados” para irmos para o recreio jogar à bola), com colegas muito irreverentes que volta e meia lançavam a confusão na turma. E depois, mais crescido, devo muito à Universidade, mesmo passando os cinco anos do curso com uma revolução pouco depois do início e o resto com muito PREC à mistura… Mas tinha na retaguarda uma família, autêntico porto de abrigo, mau grado os conflitos normais, sobretudo na adolescência.

É aqui, na família, também cheia de imperfeições e instabilidade – porque não há “famílias perfeitas” – que tudo se joga. Com ela bem estruturada (ou até mesmo bem “reestruturada”), com pais que saibam “educar”, tudo será mais fácil e não haverá anos letivos escangalhados.  

Olhemos, pois, com serenidade e confiança para os oito meses que temos pela frente. E transmitamos essa serenidade e confiança às crianças e aos jovens. Para eles aprenderem a olhar com tranquilidade e esperança os muito desafios da vida, sobretudo quando “forem grandes”.

Jorge Cotovio
jfcotovio@gmail.com
Artigo da edição de novembro de 2023 do Jornal da Família

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