Creio que nenhuma mãe e nenhum pai desejará ter filhos que aceitem tudo, que vão na onda, que não saibam refletir antes de agir, que não tenham opinião própria e que não estejam capacitados para avaliar uma situação para depois decidir ponderadamente.
Mas este “espírito crítico”, ilustrativo da desejada autonomia, deve ser, desde cedo, treinado, sobretudo pelos pais e avós. E, depois, complementado pela escola.
Há dias, passeava com o Francisco (de 3 anos e meio). É claro que vamos sempre à conversar. Às tantas vemos uma garrafa de plástico no chão. Perguntei-lhe se aquilo estava correto. Logo me diz que não, e acrescenta que a garrafa devia ter sido colocada no ecoponto amarelo. Elogiei-o e continuei a explorar esta situação, levando-o facilmente a criticar a atitude de pessoas (e colegas) que “deitam o lixo para o chão”. Noutra ocasião, ralhei ao Guilherme (na altura, com uns 3 anos) por ele ter riscado a mesa com um marcador. Ao que me respondeu: “Foi a Margarida que me disse para riscar”. Aproveitei, naturalmente, para lhe perguntar “se fez bem” fazer o que a irmã, mais velha do que ele dois anos, lhe pediu. O Guilherme reconheceu facilmente que fez mal. E foi oportunidade para perguntar à Margarida por que razão ensinou o irmão a fazer uma asneira…
Entre irmãos (mas não só), não faltam diariamente oportunidades para desenvolver o espírito crítico, especialmente dos mais novos, sempre tentados a copiar o que os irmãos mais velhos fazem – particularmente os disparates –, sem refletirem.
Incumbe, pois, aos pais, avós, tios, família, amigos – e também à escola – aproveitarem todas as ocasiões para questionar, desafiar, interpelar, provocar. Sei que esta incumbência, apesar de simples (e divertida), não é fácil de concretizar. Falta o tempo, falta a disponibilidade e, sobretudo, falta a “pachorra”. Os miúdos são muito engraçados, mas absorvem demasiado e, às vezes, são chatos, saturam… Mas, seguramente, vale a pena o nosso esforço e a nossa paciência. Vale a pena pois é assim, aprendendo a interpretar o que os rodeia, que eles desenvolvem a autonomia, a capacidade de reflexão e de discernimento, a arte de olhar criticamente, filtrando o que veem, o que ouvem, o que sentem e pressentem. Vale a pena, pois é assim que os miúdos aprendem a ver o invisível, o que está por trás das coisas, e a não se deixarem convencer somente pelas aparências, pelo que se vê, pelo sensorial. É assim que eles aprendem a “desconfiar”…
A este propósito, recordo estas palavras do Papa Francisco, ao falar para os jovens, na Universidade Católica, em agosto passado: «Desconfiemos das fórmulas pré-fabricadas (são labirínticas), desconfiemos das respostas que nos parecem ao alcance da mão, das respostas extraídas da manga como se fossem cartas viciadas de jogar; desconfiemos das propostas que parecem dar tudo sem pedir nada. Desconfiemos».
O problema – o grande problema – é que muitos pais (e educadores em geral) também não desenvolveram (nem se esforçam por desenvolver) o “espírito crítico”. Também eles vão aceitando mais ou menos tudo, acreditam no conteúdo estéril das muitas mensagens que todos os dias recebem (e até arranjam tempo para as ler…), vão na onda. A própria escola, como espelho da sociedade e refém das opções políticas, vai assimilando a cultura do facilitismo (que contribui para resultados sofríveis como os que tivemos no último PISA), e está mais ocupada com a imagem do que com o processo. E os pais, relativamente à escola, ao invés de denunciarem conteúdos e práticas que ofendem a dignidade humana, estão mais preocupados com a correção de um teste escrito e a sua classificação final, com a metodologia inovadora seguida por um professor que rompe com rotinas do passado (e os confunde), com um aluno que reagiu impulsivamente a uma provocação do próprio filho, ou com um professor que levantou a voz perante uma atitude incorreta de um aluno…
Estando nós no limiar de mais uma campanha eleitoral, e num ano com dois atos eleitorais (três nos Açores), temos a gravíssima obrigação de assumir a nosso dever cívico, como cidadãos responsáveis que sabem ouvir criticamente e decidir autonomamente. E votar. E aproveitar estas circunstâncias para sensibilizar os nossos filhos (e netos) com 18 ou mais anos, para também votarem, depois de procurarem esclarecer-se, processando criticamente a (muita) informação que lhes chega de todos os lados e por todas as vias.
Se não queremos ter filhos (e netos) Maria-vai-com-as-outras, tratemos, em primeiro lugar de nós. Depois, treinemos os nossos filhos (e netos) para saberem resistir à corrente e nadarem corajosamente para a nascente, onde a água jorra ainda pura e cristalina…
Jorge Cotovio
jfcotovio@gmail.com
Artigo da edição de janeiro de 2024 do Jornal da Família