Depois de se idolatrar tantos anos este simpático equipamento que se acordou, entre nós, chamar “telemóvel” (celular, no Brasil), parece que agora o queremos diabolizar e culpá-lo de tudo: de roubar o telefone, a máquina fotográfica, o computador, a televisão, a calculadora, a lanterna, a enciclopédia, o calendário, os livros, os jornais e revistas, o convívio, o tempo para diálogo, as brincadeiras; de substituir o livro de cânticos, a liturgia das horas, o ordinário da missa e até a Bíblia; de afetar o crescimento saudável e o sucesso escolar das crianças e dos adolescentes; de promover/ alimentar o bullying; de ser uma porta aberta para coisas más e perigosas; etc. O telemóvel parece, pois, estar a ser o bode expiatório de todos os males.
Na opinião pública, parece haver um consenso sobre as restrições ao seu uso nos níveis etários mais baixos, alinhando-se, assim, com opiniões científicas mais ou menos credíveis.
Sujeito a pressões para se pronunciar a este respeito, o Governo recomenda a proibição do uso e da entrada de telemóveis nas escolas para os 1.º e 2.º ciclos. É “apenas” um conselho, cabendo a cada agrupamento de escolas, no âmbito da sua autonomia, a decisão. É claro que esta recomendação vai ser facilmente acatada no caso do 1.º ciclo, até porque serão raras (será que serão, ou é apenas uma impressão minha?) as crianças que nesta idade têm telemóvel. E também creio que não vai ser difícil no 2.º ciclo. E até acredito que muitas escolas, mesmo sem serem recomendadas para tal (por enquanto), vão também estender a proibição ao 3.º ciclo, excetuando para uso pedagógico, devidamente autorizado/ acompanhado pelos professores.
Ou seja, com tantos ruídos, avisos, recomendações e proibições, parece que vamos ter esta situação mais ou menos resolvida…
Pura ilusão. Não teremos.
O telemóvel – melhor, o smartphone –, tal como a Toyota, “veio para ficar” – e ficou mesmo. Não há volta a dar. Que o digam os adultos, cada vez mais dependentesdeste aparelho, cada vez mais viciados das redes sociais, das mensagens, dos SMS, das notícias sensacionalistas.
Regressemos aos alunos proibidos de usar o telemóvel na escola. Privados dele desde a manhã, no final das aulas, logo que saem da escola, “devoram-no”. Nem olham para o lado, nem para a frente, nem para as pessoas. No Facebook, no WhatsApp, no Youtube, no Instagram, no Messenger correm mensagens sobre mensagens. Eles têm de recuperar um dia na escola sem nunca olhar e manusear o seu querido telemóvel.
E, em casa, se não controlados pelos familiares, às claras e às escondidas, vão cair facilmente na tentação, não só de o olhar e usar, mas sobretudo, de abusar.
Caros amigos, deixemo-nos de histórias: todos nós, adultos (e adultos responsáveis) gostamos do telemóvel. Com ele, sentimo-nos mais seguros, simplificamos processos, poupamos tempo, lemos o Jornal da Família em todo o lado e até podemos salvar vidas – a nossa e a de outros. Ou estarei a inventar? Não o diabolizemos, pois, nem o idolatremos. Tenhamos bom senso – nós os adultos, nós os pais e avós. Se o soubermos usar com razoabilidade, os nossos filhos, netos, bisnetos, alunos, colherão um bom testemunho, que contribuirá, provavelmente, para também o imitarem, utilizando o dispositivo com a ponderação possível.
Depois, conforme as idades, saberemos estabelecer regras. E ter algumas cautelas. Porque os pais podem definir nos aparelhos dos filhos muitas coisas, em termos de segurança. E até proibir o acesso a determinados “sítios” da Internet…
O essencial, quanto a mim, será os pais educarem os filhos para a utilização racional e equilibrada do telemóvel, conquanto fiquemos cientes de que, mesmo com estas medidas preventivas, pode haver – e haverá sempre – abusos. Mas será também desta forma que eles aprenderão a ser pessoas responsáveis, capazes de controlar, no futuro, emoções, atitudes, vontades, tentações.
Quando escrevo estas linhas a bateria do telemóvel está na carga máxima. Mas a dinâmica dos tempos modernos – que só admite duas velocidades, “rápido” e “muito rápido” – fará com que, quando o jornal for editado e chegar à nossa caixa do correio (também à do correio “eletrónico”, pois é por esta via que mais o leio) já esta carga estará fraquíssima, e ninguém mais falará do assunto. Nessa altura, estará/ está em carga máxima o orçamento de Estado, e a comunicação social (e os comentadores políticos) não verá outra coisa…
É assim a vida. Vivemos de factos – sociais e políticos – normalmente efervescentes, mas efémeros. Que até nos faz esquecer que a vida – aquilo que é realmente importante, que vale a pena, e nos devia (pre)ocupar sobremaneira – é eterna. Infelizmente, cada vez considerada menos eterna para mais gente.
Vou terminar, pois tenho uma série de mensagens por ver no meu “querido” telemóvel…
Jorge Cotovio
jfcotovio@gmail.com
Artigo da edição de outubro de 2024 do Jornal da Família
Imagem ilustrativa: Unsplash