Por estes dias em que, para muitos de nós, o ritmo de vida corre de outro modo, foi possível organizar-me dedicando algum tempo de qualidade a várias propostas culturais. Foram momentos intensos em que, junto da minha família, contemplei a beleza e a qualidade do génio humano. Confesso que já sentia saudade dessa desaceleração. Andamos tantas vezes a correr, porque a vida nos está a exigir tantas coisas, que corremos o risco de dar mais destaque às exigências do que à própria vida.
Tem toda a razão o Papa Francisco ao afirmar que este estilo de vida frenético, a que na Laudato Sí’ nº 18 apelida de rapidación (palavra dificilmente traduzível para português), acaba por não ser nada amigo da vida humana, uma vez que esta, para ser verdadeiramente humana, tem de ser vivida, contemplada e saboreada com a calma necessária. Com isto, como é obvio, não estou a fazer a apologia do ‘deixa andar’, que é também outro sintoma desse estilo de vida pouco compatível com o que intuímos ser o dom da vida humana.
Ao viver esses momentos lembrei-me do discurso que o papa Bento XVI dirigiu ao mundo da cultura no Centro Cultural de Belém, no dia 12 de maio de 2010 por ocasião da sua visita a Portugal.
Nessa altura, afirmou:
«A Igreja – escrevia o Papa Paulo VI – deve entrar em diálogo com o mundo em que vive. A Igreja faz-se palavra, a Igreja torna-se mensagem, a Igreja faz-se diálogo» (Enc. Ecclesiam suam, 67). De facto, o diálogo sem ambiguidades e respeitoso das partes nele envolvidas é hoje uma prioridade no mundo, à qual a Igreja não se subtrai. […]. Constatada a diversidade cultural, é preciso fazer com que as pessoas não só aceitem a existência da cultura do outro, mas aspirem também a receber um enriquecimento da mesma e a dar-lhe aquilo que se possui de bem, de verdade e de beleza.»
Destacar a importância do diálogo sem ambiguidades e respeitoso parece-me ser hoje uma prioridade ainda maior do que na altura em que o discurso foi proferido, tal como a necessidade de saber acolher e partilhar o melhor que cada cultura pode oferecer para a promoção do humano, porque em boa verdade é isso que a cultura deve ser: expressão do belo da humanidade.
E o discurso continuava, numa linha que continuou a ganhar atualidade: «Esta é uma hora que reclama o melhor das nossas forças, audácia profética, capacidade renovada de «novos mundos ao mundo ir mostrando», como diria o vosso Poeta nacional (Luís de Camões, Os Lusíadas, II, 45).»
E já mesmo ao concluir, lembrando a missão da Igreja no mundo da cultura, faz a afirmação, que continua a ser para mim uma das melhores e mais atuais traduções do que somos chamados a testemunhar, e que destaco a negrito:
«a Igreja sente como sua missão prioritária, na cultura atual, manter desperta a busca da verdade e, consequentemente, de Deus; levar as pessoas a olharem para além das coisas penúltimas e porem-se à procura das últimas. Convido-vos a aprofundar o conhecimento de Deus tal como Ele Se revelou em Jesus Cristo para a nossa total realização. Fazei coisas belas, mas sobretudo tornai as vossas vidas lugares de beleza.»
Ser capaz de descobrir a beleza da vida humana, mesmo quando ela está muitas vezes escondida debaixo de tantas realidades que não podem deixar de nos interpelar, até por essa mesma razão de esconderem a beleza do humano criado por Deus, deveria ser uma das nossas maiores prioridades enquanto cristãos. E se isso é muito importante, mais importante me parece ser o convite a fazer das nossas vidas lugares de beleza.
Não se trata de ser ingénuo e de ignorar tudo aquilo que ‘desfeia’ a vida humana, como já disse, e que não pode deixar de ser denunciado e combatido, trata-se, isso sim, de centrarmo-nos no essencial, que é como sabemos o facto de sermos filhos muito amados e queridos. É isso belo! Muito belo!
Este exercício de paragem, para contemplar a beleza da humanidade e dela ser testemunho na nossa vida, é algo de que estamos muito necessitados, para podermos depois ousar construir o mundo a que Deus nos continua a convocar.
Juan Ambrosio
juanamb@ucp.pt
Artigo da edição agosto/setembro de 2024 do Jornal da Família