Precisamos de vozes e olhares lúcidos

Juan Ambrosio reflete sobre os dias cinzentos na sociedade e na Igreja e apela a vozes que convoquem para o “cuidado um dos outros e para a promoção do bem-comum” e olhares que “saibam destacar o muito de positivo” que vai acontecendo no mundo.

Vivemos tempos que, no mínimo, nos fazem pensar sobre o futuro que estamos a construir enquanto humanidade. Os sinais que vamos detetando acerca desse mesmo futuro não nos podem deixar descansados pensando que o sucesso está garantido. Esta realidade encerra em si mesmo um certo paradoxo, pois nunca estivemos na posse de conhecimentos tão profundos, nem nunca possuímos tantos recursos para lidar com as dificuldades. Hoje temos respostas para problemas que não há muito tempo seriam encarados como catástrofes muito difíceis de ultrapassar. Mas, apesar disso, vai ganhando lugar um certo tom de descrença, de desânimo e de incerteza, quando temos de verbalizar o modo como estamos a preparar o futuro.

E quando olhamos para as grandes decisões que estamos a tomar enquanto povos e nações, a preocupação não diminui. Continuamos a assistir a guerras que destroem vidas e só geram mais violência, em vez de resolver os problemas que estão na sua origem, sendo, por isso, realidades autenticamente absurdas. Continuamos a ver povos esmagados por ditadores que só se importam consigo e com os seus, povos humilhados e obrigados a viver em condições que, aqueles que vivemos nesta parte do mundo, consideramos indignas da condição humana. Mesmo entre nós, assistimos ao crescimento dos radicalismos e nos vários atos eleitorais a que temos assistido ultimamente, vemos como os extremos ganham força. Em vez de convergirmos na procura de soluções comuns para problemas comuns, parece que divergimos, procurando caminhos que nos separam em vez de nos unir.

No meio desta situação vamo-nos dando conta da necessidade de escutar vozes lúcidas que sejam capazes de fazer leituras realistas, mas positivas, que nos convoquem para o exercício do cuidado um dos outros e para a promoção do bem-comum. Precisamos também de olhares que saibam destacar o muito de positivo que igualmente vai acontecendo, e que, no meu entender, continua a sustentar o mundo e a fazer-nos acreditar que é possível fazer diferente e melhor.

O que estamos a assistir ao redor da situação de fragilidade e doença grave do Papa Francisco, no momento em que escrevo estas linhas, parece-me sustentar o que acabo de partilhar, num registo que gostaria tivesse sido mais bem positivo.

São mesmo muitos os que seguem com atenção a evolução da situação. E desses muitos, muitos não são católicos, mas pessoas que intuem a necessidade de ousarmos caminhos diferentes daqueles que estamos a percorrer, caminhos a que o papa Francisco tem apontado com grande insistência. A sua voz verbaliza as tais leituras realistas e positivas de que temos necessidade, convidando-nos ao cuidado e à promoção do bem comum; o seu olhar não se cansa de procurar e destacar o bom e o belo de que a humanidade é capaz, sublinhando a importância de sermos protagonistas daquela esperança que se compromete em ir fazendo acontecer aquilo que se espera.

Também nesta situação encontro um paradoxo. Na fragilidade deste homem de 88 anos podemos descortinar a força de quem acredita num Deus que ama a humanidade e nunca desiste dela. Também nós precisamos de acreditar neste amor, também nós somos chamados a não desistir.

Não sabemos ainda bem como vai evoluir a situação de saúde de Francisco. Desejamos as suas melhoras, rezamos por elas, ousamos pedir ao Senhor da Vida mais algum tempo para que a sua voz se possa continuar a ouvir e o seu olhar se possa continuar a sentir, mas temos de estar preparados para o tempo em que a sua voz se cale e o seu olhar se feche. E o melhor modo de lidar com essa situação é fazer tudo o que estiver ao nosso alcance para continuarmos a desbravar os caminhos por ele apontados.

A renovação da Igreja feita a partir das periferias existenciais e geográficas a que ela é enviada, para melhor poder cuidar da Casa Comum e do Humano Comum parecem-me ser sinais de pistas maiores, e a misericórdia e a sinodalidade traços indispensáveis que as comunidades cristãs devem assumir nesses caminhos que somos chamados a percorrer com toda a humanidade, porque essas comunidades não devem, não podem fechar-se sobre si mesmas, sendo convocadas a comprometer-se com a promoção do bem-comum de toda a humanidade, como testemunhas e sinais de esperança.

Comecei este texto em tons bastante cinzentos, quero acabá-lo em tons mais positivos, não porque ingenuamente não perceba que estamos no fim de um Pontificado, mas porque acredito que os caminhos iniciados, se percorridos com coragem e com a convicção de que não estamos sozinhos, nos podem levar a construir um futuro diferente para a Igreja e para a humanidade.

Juan Ambrosio
juanamb@ucp.pt
Artigo da edição de março de 2025 do Jornal da Família

Foto: Vatican Media

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