Já vai longe – corria o ano de 1995 (há 30 anos!) – quando o Governo de então, liderado por António Guterres, proclamava “A paixão da educação”. A face mais visível desta “paixão” foi o incremento na educação pré-escolar da rede estatal, uma vez que até então a rede do pré-escolar era somente constituída por infantários e escolas do ensino privado.
As novas dinâmicas familiares e o reconhecimento de que educação pré-escolar é fundamental, contribuindo, sobremaneira, para o desenvolvimento cognitivo e social das crianças, fez com que os sucessivos governos nunca mais deixassem de ter esta “paixão”. O certo é que estes 30 anos não foram suficientes para proporcionar a todas as crianças a partir dos 3 anos uma educação formal, a este nível, como se desejava (e previa). Por falta de visão, falta de investimento, falta de escolas, falta de educadores e até falta de vontade política. Ou seja, nestes 30 anos houve muitas “faltas”.
Entretanto, neste limbo em que o governo se encontra, o conselho de ministros aprovou há poucas semanas “contratos de associação” com privados para abrir duzentas salas, abrangendo cerca de cinco mil crianças em municípios carenciados de oferta da rede pública. Ou seja, o governo quer aproveitar – e muito bem! – a rede privada e social instalada, e até estimulando a criação de novas “escolinhas”.
Esta situação faz-me recuar 45 anos. Em 1980, o Estado consagra em lei os “contratos de associação” para estabelecimentos dos 2.º e 3.º ciclos e ensino secundário localizados em zonas sem escolas públicas ou com elas saturadas (sem possibilidade de receber mais alunos). Na altura, aproveitaram-se escolas já existentes (muitas delas escolas católicas) e muitos privados construíram equipamentos de raiz. Como o ensino era gratuito, o Estado pagava um montante que deveria ser semelhante ao que despendia para as suas escolas – algo que nunca cumpriu, pois pagava muitíssimo menos (cerca de metade do valor).
Infelizmente, a história diz-nos que o Estado costuma ser ingrato a tudo aquilo que não é “público” (isto é, “estatal”), sobretudo quando o bem-comum é vencido pelas ideologias políticas. Foi isso o que sucedeu há mais ou menos dez anos, quando ¾ das escolas privadas com contrato de associação deixaram de ter apoio do Estado, levando ao encerramento da maioria delas, depois de prestarem um serviço educativo de “excelência”, reconhecido por todos, a começar pelos primeiros educadores – os pais.
Depois desta triste recordação, não posso deixar de olhar com alguma apreensão esta recente decisão do governo relativamente ao pré-escolar, ademais quando não há nenhuma garantia de que a coligação que o suporta vença as próximas eleições. Deixemo-nos de estórias: a tentação dos governantes (e dos autarcas!), tendo em conta a experiência passada, é ir construindo estabelecimentos, não se importando se eles são efetivamente necessários e se afetam ou não um eventual estabelecimento que agora aceita ter contrato de associação. E depois de construído, facilmente o Estado, unilateralmente, cancela o contrato. E mesmo não construindo, o Estado “ingrato”, quando vir que não necessita da escola privada contratualizada finda o contrato.
Outro aspeto a ter em conta é o facto de agora serem precisas muitas salas porque se pretende acolher todas as crianças de 3, 4 e 5 anos, muitas delas filhas de imigrantes. Mas daqui a poucos anos este caudal vai reduzindo, não só porque apenas entram para o sistema as crianças com 3 anos, mas também porque a tendência, mesmo entre os imigrantes, é haver cada vez menos filhos.
Por tudo isto, quase apetece dizer que estamos perante um “presente duvidoso” cuja aceitação – que defendo – tem riscos. Riscos que devem ser devidamente acautelados e concertados com os autarcas (e governantes), exigindo deles garantias mínimas que sobrevivam às normais mudanças governamentais e autárquicas, de 4 em 4 anos.
Tudo isto seria evitável se houvesse liberdade de educação, tal como aponta a nossa Constituição. Isto é, se os pais tivessem a possibilidade de escolher a escola para os seus filhos, independentemente de ser pública, social ou privada, sem ter de pagar propinas.
Enquanto não nos aproximamos deste desiderato, saibam as instituições, mormente as católicas, gerir estes processos com ponderação, não tendo medo de assumir alguns riscos. Até porque as nossas crianças merecem todo o nosso empenho, dedicação e carinho. E “paixão” …
Jorge Cotovio
jfcotovio@gmail.com
Artigo da edição de abril de 2025 do Jornal da Família
Foto: Arquivo Jornal da Família