Muitas vezes ao longo da nossa formação como cristãos fomos ouvindo que somos peregrinos em direção à casa do pai, que não temos neste mundo morada permanente, que verdadeiramente a nossa pátria é o céu. Em muitas homilias certamente ouvimos também uma perspetiva semelhante, ao comentar os textos bíblicos lidos nas celebrações. O tempo de Quaresma, que estamos a viver, é também propício a uma abordagem deste tipo, lembrando-nos que o nosso foco não deve ficar prisioneiro no aqui e agora, mas que cada aqui e agora, nos deve preparar para a meta para a qual caminhamos.
Não quero minimamente colocar em questão a verdade destas afirmações. A nossa fé diz-nos verdadeiramente que aquilo que o Pai tem preparado para nós não se esgota aqui, nem no fim da vida, pelo que o nosso horizonte deve ser mais amplo, constituindo um convite a ver mais longe.
Mas dizer isto, acreditar nisto, não pode ser equivalente a não levar a sério a nossa existência neste mundo, mais, e atrevo-me mesmo a dizer, não deve ser equivalente a não encarar este mundo como sendo a nossa morada. Certamente não é a última, assim o acreditamos, mas isso não quer dizer, não pode querer dizer, que não seja morada verdadeira, morada para ser habitada a sério.
Partilho esta reflexão, mesmo sabendo que corro o risco de ser mal-entendido, porque me parece que é urgente assumirmos, também como tarefa cristã, o exercício de habitar e transformar o mundo. E sublinho a dimensão do habitar porque nela encontro um exercício muito diferente do simples ocupar, a que, com frequência, as afirmações inicialmente referidas, quando não bem entendidas, nos podem levar. O exercício de ocupar acaba sempre por revelar que o lugar onde estamos não é verdadeiramente nosso, pelo que não nos compromete com o seu cuidado, com a sua transformação. Para que gastar energias e recursos com a transformação de um lugar que não nos pertence? Para que comprometermo-nos com a transformação do mundo se este não é verdadeiramente o nosso lar? Habitar, implica outro nível de compromisso e interação, através do qual intervenho no lugar para o transformar, para o fazer um lar, no qual possa crescer e desenvolver-me como pessoa.
Todos somos capazes de perceber isso pela experiência que fazemos quando ocupamos, por exemplo, um quarto de hotel. Claro que queremos que ele esteja limpo e minimamente arrumado, mas não exigimos mais do que isso, porque não vamos habitar aquele espaço, simplesmente o ocupamos por um tempo curto. E se percebemos que o tempo em que vamos estar naquele quarto se deve alargar consideravelmente, imediatamente começaremos a ensaiar exercícios de habitação que vão transformando o espaço, tornando-o cada vez mais no nosso espaço, assemelhando-o com um lar. E começam a surgir as fotografias dos membros da família, e começam a aparecer aquelas coisas pessoais que têm um significado especial. É, também, isso que acontece quando, por exemplo, alugamos uma casa por um longo tempo. Apesar de não ser nossa ela vai sendo habitada e transformada de modo que possa ser o lar.
Recorro a estes exemplos para me ajudar a sustentar a ideia que quero partilhar, ou seja, o compromisso com a habitação e transformação do mundo. E faço isso porque estou profundamente convicto de que a verdade da experiência cristã também pode e deve ser aferida por esse exercício.
É assim que leio o nº 181 da Evangelli Gaudium relação:
O Reino, que se antecipa e cresce entre nós, abrange tudo, como nos recorda aquele princípio de discernimento que Paulo VI propunha a propósito do verdadeiro desenvolvimento: «Todos os homens e o homem todo». […] O mandato é: «Ide pelo mundo inteiro, proclamai o Evangelho a toda criatura» (Mc 16, 15), porque toda «a criação se encontra em expectativa ansiosa, aguardando a revelação dos filhos de Deus» (Rm 8, 19). Toda a criação significa também todos os aspetos da vida humana, de tal modo que «a missão do anúncio da Boa Nova de Jesus Cristo tem destinação universal. Seu mandato de caridade alcança todas as dimensões da existência, todas as pessoas, todos os ambientes da convivência e todos os povos. Nada do humano pode lhe parecer estranho». A verdadeira esperança cristã, que procura o Reino escatológico, gera sempre história.
Nada do que é humano pode ser estranho aos cristãos, por isso a sua presença no mundo deve ser sempre geradora de história, introduzindo nela o Evangelho (a Boa Notícia) em que acreditamos.
Por isso me parece necessário passarmos de um cristianismo vivido ‘apesar do mundo e do humano’ a um cristianismo ‘(re)situado no coração do mundo e do humano’, habitando e transformando esse mundo e comprometendo-se com a dignificação desse humano.
Juan Ambrosio
juanamb@ucp.pt
Artigo da edição de abril de 2025 do Jornal da Família
Foto: Vatican Media