Dois dias de congresso depois de uma caminhada de três anos. O congresso “Atravessados pelo Amor e pela Esperança – Cuidar as famílias com(o) o Pe. Brás” partiu do legado deste sacerdote, cujo Centenário de Ordenação Sacerdotal se celebra no próximo dia 19 de julho, para olhar a realidade familiar contemporânea, em que chegar às famílias implica respeitar as mais diversas formas de ser família.
Pedimos à Cooperadora Elisabete Puga e ao prof. Carlos Campos, participantes atentos neste congresso, para irem registando as ideias-chave saídas das várias intervenções. O resultado foi um texto lido a duas vozes no final do congresso e que aqui partilhamos com as devidas adaptações.
A primeira conclusão deste congresso é que encontros como este são uma oportunidade para o encontro, para a troca de abraços, memórias e sorrisos. O prof. Eduardo Lourenço disse que há dias em que nos levantamos cedo para ver o novo dia antes de Deus chegar, mas Deus levanta-se sempre mais cedo. As Cooperadoras da Família também são assim. Quando os participantes chegaram, já cá estavam e tudo estava preparado.
Foram três anos de preparação, explicou Juan Ambrosio, nas palavras de boas-vindas. Um ano para recordar o itinerário do Mons. Alves Brás. Um ano para refletir sobre o que fazem as Cooperadoras hoje e um ano a refletir sobre o futuro. E deixou palavras fortes para o arranque do congresso: Amor, Esperança, «é preciso lutar», «Acreditar que a amizade nos faz mais fortes», «É o Amor que impulsiona a obra do Pe. Brás».
D. Ivo Scapolo, Núncio Apostólico em Portugal, fez questão de estar presente, desde a primeira hora. Na sua mensagem como representante de Sua Santidade, o Papa Leão XIV, referiu o reconhecimento do trabalho realizado pelas Cooperadoras da Família e deixou uma exortação para o futuro: «adaptar o trabalho à realidade». E o Congresso partiu nessa demanda com um um hino e um belo momento de oração. Vale a pena lembrar: «a pressa é inimiga da esperança». Tem de haver tempo para perdoar e cuidar… «O tempo e o templo do Amor», «O Amor que sobrevive às feridas é o tempo que sabe esperar». Ou como escreveu D. Tolentino de Mendonça, «tempos que não sejam apenas tempos, mas circulação de vida, de entusiasmo, de criação e de afeto».
Enfrentar desafios novos com respostas novas
A oração deu balanço à primeira comunicação temática deste congresso: a atualização da intuição do pensamento do Pe. Brás. Que futuro queremos construir? Que humanidade queremos ser? Foi de novo Juan Ambrosio a fazer o desafio. «O futuro que queremos deixar às nossas crianças depende das crianças que deixarmos ao futuro». E cumprir o futuro não é apenas uma questão técnica. É também uma procura de sentido, um alinhamento com o grande desígnio de Deus. Para chegar a Deus, temos de passar pelo humano. Como o Pe. Brás e os seus quatro amores: o sacerdócio, as criadas de servir, as Cooperadoras da Família e as famílias.
O Pe. Brás começou a adaptar a sua obra aos desafios traçados pelo concílio Vaticano II. Infelizmente, partiu antes de concluir esse trabalho, o que significa que ainda há trabalho a concluir. Em muitos aspetos, o Pe. Brás antecipou, ainda que com outras palavras, ensinamentos que a Igreja viria a enfatizar mais tarde. Por exemplo, «pensar o centro a partir das periferias e não o contrário».
Outro exemplo, «cooperar, mas não substituir», como o Papa Francisco viria a indicar na Amoris Laetitia. Por isso, ao criar um corpo dinâmico para impulsionar o trabalho, escolheu a designação Cooperadoras da Família. Mas os desafios do passado são do passado e agora os desafios são do presente e do futuro. São desafios diferentes e exigem respostas diferentes. Há que adaptar a ação à realidade e assumir uma dupla cidadania: a de Deus e a dos homens. Não se pode continuar a fazer tudo da mesma maneira. Juan Ambrosio, referiu-se a isso como «o império do semper idem». Sempre da mesma maneira. Ele usou o latim, mas na realidade estava a exortar à inovação. A enfrentar desafios novos com respostas novas.
Chegar às famílias implica respeitar a sua forma de ser família
Eduardo Duque apresentou os resultados do inquérito “A família na sociedade contemporânea”
Encontrar e preparar respostas novas exige conhecer a realidade das famílias de hoje. Foi esse o tema da comunicação seguinte, a cargo do Pe. Eduardo Duque, que nos trouxe a perspetiva de um sociólogo.
A comunicação de Eduardo Duque mostrou como evoluiu o modelo de família hierárquico e autoritário para um modelo de família mais dialogante, democrática, se quisermos, e mais negocial. Baseada no convencer em vez do impor, esta nova família tem como valores expressivos a autonomia, a participação, a opinião. Influenciar esta nova família exige outra atitude. Exige «cativar por dentro», acompanhar, e ter um espírito mais aberto.
Em Portugal, a mudança foi rápida, porque tardou, porque começou mais tarde. Além disso, as famílias portuguesas ainda conservam traços dos modelos mais antigos. Temos, portanto, valores mistos. E temos não um modelo estrutural de família, tipicamente biparental, mas múltiplos modelos: famílias monoparentais, famílias homoparentais, famílias reconstituídas, famílias sem filhos.
Não se pode, por isso, continuar a agir como se todas as famílias fossem tradicionais. Cooperar com as famílias – todas as famílias – implica considerar todos os modelos. E a todos se deve cativar por dentro, como alguém que acolhe, que compreende. Como Jesus faria.
O Pe. Eduardo Duque teve neste congresso uma abordagem combinada e duplamente vantajosa: por um lado, quase tudo o que disse sobre a evolução das famílias se baseou em dados concretos, em estudos e inquéritos de observação e análise da realidade; por outro lado, foi a abordagem de um homem de Deus, de um homem de Igreja. Para nos dizer como é que nós todos, nós Igreja, devemos agir. Constatando que muitas pessoas, e especialmente os jovens, estão afastados da Igreja, Eduardo Duque levou-nos a pensar pelo ângulo oposto. Se calhar, nós, Igreja, é que nos deixámos afastar das famílias e dos jovens. Porque os problemas agora são mais complexos, as nossas respostas simples deixaram de ser suficientes. Se queremos chegar às famílias temos que começar por respeitar a sua forma de ser família.
Um chamamento à ação
A família deixou de ser, ou passou a ser menos, transmissora de valores. A transmissão de valores está a diminuir e isso é um sinal de alarme. Um chamamento à ação. Não para tentar andar para trás, mas para ajudar a seguir em frente e ajudar as famílias a encontrar o caminho. É para mudar de vida, mas não por imposição. Mas sim como “Cristo faria”, como já dissemos. É dizer a todos que não estão sozinhos. Que Jesus os ama. E o amor de Cristo não é uma ideologia. É um apelo ao livre-arbítrio. À vontade livre e consciente. E isso já é linguagem que as famílias e os jovens entendem: o desejo de independência, a procura de reconhecimento individual, tudo isso, a necessidade premente dos afetos…
Ao caraterizar as famílias, com base nos resultados do inquérito “A família na sociedade contemporânea”, o Pe. Eduardo Duque levou-nos a tomar consciência que o trabalho com as famílias se deve basear em novas regras: relações horizontais e negociadas, responsabilidade, respeito mútuo, tolerância, realização pessoal…
Vivemos o tempo da grande abertura, que também é o tempo de grande desespero. Há muitas pessoas que não sabem quem são… Como disse Eduardo Duque, em alturas de desespero, é importante que haja um sacerdote por perto para dizer a quem está desesperado que Cristo o ama. E se não for um sacerdote, pode ser uma Cooperadora…
A Igreja não pode deixar esta sociedade à deriva. Tem de caminhar com as pessoas. Se 95% das pessoas acham que a família é importante, não está tudo perdido. Se a partilha e a transmissão de valores ainda são importantes, então as famílias estão à nossa espera. Estão a precisar de nós.
Os dados do inquérito “A família na sociedade contemporânea” falam por si. A fé religiosa diminuiu muito. Mas a importância atribuída a Deus mantem-se alta. Mesmo entre os que não têm religião! Nem tudo está perdido. Será que nos distraímos? Então é altura de partir para uma nova abordagem. E segundo os dados temos razões para acreditar no êxito da nossa missão. 90% das pessoas têm uma imagem positiva das Cooperadoras da Família. Se os dados dizem isso, é porque estão mesmo à nossa espera. Vamos estudar muito bem todos os dados e passar à ação.
As Cooperadoras da Família foram sempre mulheres de ação. Ontem ouvimos vários testemunhos dessa ação. E quando se perguntou a um grupo de jovens o que esperavam das Cooperadoras, a resposta foi: «que continuem».
O casal José e Fernanda Azuaje-Fidalgo, a Dana Soares, o Pedro Moreira e o Francisco Sá Nogueira (em vídeo) testemunharam a importância das Cooperadoras da Família nas suas vidas
Família: os contributos da sociologia, da teologia, da pedagogia e da política
Antes desses testemunhos, o congresso dividiu-se por quatro salas, com outros tantos temas. Foi mais um exercício de observação da realidade e de reflexão partilhada. Alfredo Teixeira dinamizou a perspetiva sociológica, partindo do tema: “Famílias – entre a socialização e a individualização”. Sublinhou a Família como lugar de apoio, lugar favorável, onde o indivíduo se descobre a si próprio. Fez uma leitura da família em duas etapas fundamentais: a primeira modernidade e a dificuldade de gerir uma sociedade de indivíduos, onde todos têm direitos; e a segunda modernidade (pós 1960), uma época de grandes transformações, com destaque para dois lugares relevantes nas culturas familiares: o grande protagonismo das mulheres; e o protagonismo da emergência da criança como indivíduo e este com direitos.
Alfredo Teixeira, Juan Ambrosio, Jorge Cotovio e Assunção Cristas dinamizaram quatro workshops sobre “Família – desafios e oportunidades”
Juan Ambrosio dinamizou a perspetiva teológica-pastoral. Teve como ponto de partida a família como um bem precioso para a Igreja e para o Mundo. Neste sentido, destacou a importância da família na construção: do Mundo, da Igreja e do Futuro. Refletiu sobre a missão da Pastoral Familiar, referindo que essa missão passa por ‘cuidar’ das Famílias – de todas as famílias, não apenas as famílias cristãs. Fazer das famílias protagonistas, sem nunca as substituir. Enfrentemos os desafios, encontrando neles oportunidades.
Jorge Cotovio trouxe-nos uma perspetiva pedagógica. Tendo em conta o pensamento do Pe. Alves Brás e a Exortação Apostólica Amoris Laetitia, do Papa Francisco, olhou a família no âmbito educativo, indagando os problemas que a envolvem e procurando encontrar nela – sobretudo na “família cristã” – os “trunfos” que encerra, a fim de “educar bem” num mundo cada vez mais instável e imprevisível. Tudo isto em clima de diálogo e descontração. E para não perderam nada dos outros workshops, “destacaram” uma congressista para “espreitar” as outras salas e regressar para partilhar o resumo das temáticas abordadas em cada uma delas. “Uma missão que cumpriu com mestria”, contou Jorge Cotovio.
Assunção Cristas dinamizou a perspetiva política. A centralidade da família no sistema constitucional português. O papel protagonista que deve caber à família face a um Estado com papel subsidiário. A necessidade de conciliar trabalho e família, a necessidade de criar opções que as famílias possam escolher. A magnitude dos desafios da natalidade e da inteligência artificial.
O primeiro dia do congresso trouxe ainda informação sobre o processo de canonização do Venerável Joaquim Alves Brás. Monsenhor Fernando de Matos afirmou que «a fase que estamos a viver pode ser muito enriquecedora».
Houve ainda muita arte viva neste congresso: na exposição que veio das várias casas onde as Cooperadoras atuam, no casal (Simul in Via) que cantou o Quam amabilis est, do século XVII, no jovem Santiago que tocou saxofone, na peça comemorativa do Centenário da Ordenação do Mons. Brás ou no grupo musical de Luís Roquette que nos brindou com um evangelho em expressão musical (Banquette), um espetáculo de música e videoarte.
No segundo dia, a oração da manhã começou com versos do cardeal poeta, D. Tolentino: “pouco importa em quantas derrotas te lançou / As dores, os naufrágios escondidos / Com eles aprendestes a navegação dos oceanos gelados”. Depois, o congresso recordou a encíclica Amoris Laetitia.
A força e o desafio de ser família
Casal Barreto, casal Freitas e casal Farias Ferreira numa mesa sobre forças e desafios de ser família
Depois da oração, tivemos um painel intergeracional. O casal Bento Freitas, Anabela e Aires, testemunhou a experiência de «fazer feliz o outro assumindo as diferenças». Fazemos quase tudo juntos» – disseram. E apesar da força que os dois têm, não têm problemas em dizer que contam com a ajuda de Deus.
Esta família é um exemplo do que ouvimos falar no primeiro dia de congresso: família aberta, dialogante, com regras mas sem proibições, e com valores. Ah, e perdemos a conta do número de vezes que pronunciaram a palavra Amor.
O casal Barreto, Teresa e Gonçalo, têm quatro filhos. Só por isso, são heróis. A base da sua família: a união do casal, em que os dois se assumem como herdeiros de valores e como artífices que sabem usar as dificuldades como ferramentas para fortalecer o casamento. Como conseguem? «Somos nós e a força de Deus». E explicaram que, no caso deles, todo o tempo fora do trabalho é passado com os filhos.
Têm férias, mas não são de descanso. Sempre que possível, saem juntos para estarem em contacto com a natureza. Os filhos não nascem com manual de instruções. Eles escrevem em cada dia esse “manual”. Restringiram os ecrãs e por isso a filha pára para ver uma flor.
Rezam juntos. Os filhos são desafiantes. “Portam-se mal”, diz a mãe. São crianças. Mas na hora em que se portam bem, deslumbram. Grandes pais, grandes filhos.
A Teresa e o Gonçalo também nos explicaram como ler a Palavra de Deus em família é tão natural como… lavar os dentes!
O casal Thais Farias e Thomas Ferreira, por seu turno veio mostrar como a transmissão de valores ainda funciona. O jovem marido referiu-se à jovem esposa como “um sopro de tranquilidade”. Ele diz que ela fala pouco, mas não prescinde de a ouvir. E deixou uma observação tão óbvia, tão óbvia que até passa despercebida. Fazer as coisas certas é mais barato. As melhores coisas da vida são gratuitas. Na Igreja, tudo é de graça. As coisas que fazem mal são caras.
Depois, a esposa falou e ficámos a saber como tem o dom de dizer as coisas certas. «Tudo o que a gente faz é conversado» – disse ela. «Nunca dormir brigado» – disse ele. Eles apresentaram uma espécie de teoria geral da briga: não resulta brigar. A seguir a uma briga vem outra. O melhor é parar logo e perdoar antes de brigar. Funciona. Cinco anos de casamento e parece que foram cinco dias. «Queremos ser como eles» disseram, olhando para os outros casais mais velhos. Voltem daqui a 20 ou trinta anos, dizemos nós. Queremos ouvir o resto da história e gostamos de histórias que correm bem.
Este painel foi como a Amoris Laetitia ao vivo e em 3D. Tivemos um painel de três famílias, três casais com durações de vida em casal diferentes. Mas todos eles correspondendo a um modelo de família estruturado, funcional, biparental. No próximo congresso, se seguirmos a pista que Juan Ambrosio e Eduardo Duque deixaram aqui, teremos testemunhos de famílias com outras estruturas e saberemos como o caminho certo também se pode abrir para elas.
Acolher, integrar, acompanhar
Lydia Jiménez González, Diretora do Instituto Secular Cruzadas de Santa Maria (Espanha)
Na comunicação seguinte, Lydia Jiménez González refletiu sobre o tema “Família – Acolher, Integrar, Acompanhar”. Uma dissertação esclarecida sobre a natureza do matrimónio e as várias vertentes da união matrimonial, num mundo marcado pelo individualismo e pelo egoísmo. A oradora é diretora-geral do Instituto Secular das Cruzadas de Santa Maria, em Espanha, um instituto congénere do Instituto Secular das Cooperadoras da Família, e a sua presença neste congresso veio lembrar que o caminho não é fácil, que frequentemente precisamos de ajuda: de amigos, de associações, de sacerdotes.
O amor é sempre jovem. Se os filhos se sentirem amados, será mais fácil educá-los.
Na família, ninguém é descartável. Há que cuidar de todos, acompanhar todos, integrar todos. Lydia Jiménez trouxe palavras de estímulo para a Família Blasiana. As Cooperadoras da Família não estão sozinhas.
As Cruzadas de Santa Maria e as Cooperadoras da Família são exemplo dessa vocação especial de servir a Deus e a humanidade com dedicação e entrega pessoal total. Consagradas mas em pleno mundo, com as mãos na massa. Com alegria. Que Deus chame muitas mais porque “a Messe é grande”.
Aprendizagens, desafios e esperanças
Claudia Leal Luna, Pontifício Instituto Teológico João Paulo II para as Ciências do Matrimónio e da Família (Roma)
Por fim, uma reflexão sobre o futuro da Pastoral Familiar, a partir da Amoris Laetitia, pela teóloga Claudia Leal Luna. A docente do Pontifício Instituto Teológico João Paulo II para as Ciências do Matrimónio e da Família, em Roma, deixou-nos duas aprendizagens: o acolhimentos é para “todos, todos, todos” e a importância do casal e todos os demais (pais, avós, sogros, pais adotivos, pais divorciados…); dois desafios: “olhar com atenção e cuidado” e a importância de “gerir a diversidade interna” e duas esperanças: “que os gestos e as palavras de Francisco se tornem os nossos gestos e as nossas palavras” e “aprender nos relacionamentos algo de Deus que ainda não sabemos”.
Porque “(…) A força da família «reside essencialmente na sua capacidade de amar e de ensinar a amar. Por muito ferida que possa estar uma família, ela pode sempre crescer a partir do amor», A.L. 53
Texto: Carlos Campos e Elisabete Puga
Fotos: ISCF