No dia 24 de outubro passado, ficámos a conhecer a encíclica do Papa Francisco, Dilexit Nos (Amou-nos), sobre o amor humano e divino do coração de Jesus. Numa primeira leitura, apressada, pode até ficar a impressão de que este texto é bastante diferente dos anteriores, não só em relação ao que à temática diz respeito, mas também quanto ao tom, favorecendo a ideia de que se trata de um registo diferente.
Algo há de verdade nesta primeira sensação. O registo não é totalmente o mesmo, estando mais concentrado em dimensões espirituais. O tom também apresenta diversidade, soando mais a intimidade e interioridade. As temáticas, também surgem diversas, e também aqui parecem não estar tão direcionadas para o exterior, para o cuidado da casa comum, para o cuidado do ser humano.
Porém, quando afinamos o olhar e fazemos uma releitura mais atenta e profunda, se bem que reconheçamos estas diferenças, somos também capazes de perceber como o texto está em sintonia e na continuidade com a reflexão que o Papa nos tem vindo a habituar. Neste sentido, acabo, pois, por não partilhar inteiramente a opinião daqueles que dizem estarmos perante um texto totalmente diferente.
Aponto quatro notas que me levam a fazer esta leitura.
A primeira tem a ver com o próprio título do texto: Amou-nos. Não é preciso fazer um grande estudo para percebermos como esta proclamação aparece constantemente em todos os textos de Francisco. Em todos eles o Papa sublinha esta realidade, apresentando-a mesmo como sendo o fundamento de toda a evangelização. O anúncio do amor de Deus é o anúncio primeiro, aquele que nunca podemos deixar de fazer e ao qual temos sempre de voltar.
A segunda, está relacionada com a temática. Este texto é sobre o amor humano e divino do coração de Jesus, deixando clara esta ideia da profunda relação entre o humano e o divino. Também aqui encontro continuidade com os outros textos, pois Francisco sempre se preocupa em sublinhar o cuidado e a atenção pelo humano, destacando em muitíssimas ocasiões como isso provém do próprio cuidado e atenção de Deus. Humano e divino nunca podem estar separados no cristianismo, sendo essa uma das suas notas identitárias, que brota do mistério da encarnação.
A um olhar global sobre o texto vou buscar a terceira nota. Em certo sentido julgo que podemos afirmar como nele se denuncia a falta de coração das nossas sociedades. O coração – entendido como aquele núcleo onde se joga a verdade, onde reside o fundamento da identidade, onde brota o amor capaz de união aos outros, onde também acontece a relação com Deus – é o que falta às nossas sociedades, tantas vezes marcadas pela superficialidade, pelo consumismo e pelo egoísmo. Com frequência lemos e escutamos do Papa Francisco esta denúncia, que tão bem pode ser identificada com a falta de coração.
Muitas vezes tenho escutado, dentro da comunidade eclesial, vozes críticas que questionam a reflexão do Papa por a considerarem demasiado preocupada com coisas mais exteriores e mais sociais, descuidando a atenção a outras dimensões igualmente importantes. Tendo isto presente, e esta é a quarta nota, até me parece encontrar neste texto uma resposta a essa crítica, pois a raiz da preocupação do cuidado pela casa comum e pelo humano reside no próprio coração de Jesus, no seu amor humano e divino. O cuidado e a atenção pelo mundo e pelas pessoas brota deste núcleo de interioridade que é a união dos cristãos com o próprio coração de Jesus.
O logo do jubileu da esperança ajuda-me a ilustrar esta intuição, que partilhei a partir dos pontos anteriormente assinalados. Nele percebemos como a base da cruz tem a forma de uma âncora, querendo traduzir, de um modo simbólico, como o mistério da paixão, morte e ressurreição de Jesus é a realidade na qual podemos ancorar toda a nossa esperança. Pois bem, essa âncora remete-nos também para o amor humano e divino do coração de Jesus. Em última instância, parece-me ser nele, nesse coração entendido como nuclear fonte de amor, que o Papa vai fundamentar toda a proposta do seu pontificado, que leio como sendo um convite a renovar a Igreja para melhor poder cuidar da casa comum e do humano comum, concretizando, deste modo, o projeto de salvação que habita o coração de Jesus.
Porque este jornal chega às mãos dos leitores já perto da celebração natalícia, quero desejar a todos um Santo e Feliz Natal, pedindo que o Menino celebrado nos interpele à coragem que brota do amor humano e divino do seu coração.
Juan Ambrosio
Artigo da edição de dezembro de 2024 do Jornal da Família
Foto: Vatican Media