Sento-me a escrever estas linhas depois de ter assistido à sessão de abertura do IX Simpósio Luso-Brasileiro de Estudos da Religião, subordinado ao tema Religião e Cultura Digital. Na conferência de abertura deste encontro de estudos promovido pelo Centro de Investigação em Teologia e Estudos da Religião da Universidade Católica Portuguesa em parceria com a Pontifícia Universidade Católica de S. Paulo, a Professora Lucia Santaella partilhou uma reflexão sobre a transformação digital do espaço público.
Escutei com atenção o que foi apresentado, confirmando como vários pensadores nos estão a alertar para os desafios que surgem desta fase de profundas transformações que estamos a viver, não só ao nível social, como também ao nível da própria experiência religiosa.
O texto de apresentação do Simpósio já chamava a atenção para essa mesma realidade:
“Entre as múltiplas características da cultura contemporânea, nas suas articulações globais e locais, o processo de digitalização é, sem dúvida, uma das mais salientes. Como seria de esperar, o impacto dessa caraterística é claramente transversal, afetando todos as dimensões da cultura, a vários níveis, dos mais simples aos mais complexos, de forma direta ou indireta. Sendo a Religião, nas suas mais diversas configurações, entre outros aspetos, também um fenómeno cultural, não poderia esquivar-se ao impacto do digital, em todos os seus registos.”
O processo de digitalização em curso, acaba por afetar-nos a todos nas mais diversas dimensões, como é dito. Na verdade, ele está a provocar um redesenho nas interações sociais. A presença física e a presença virtual parecem misturar-se e confundir-se. Entramos na era do que já alguns chamam de «dataficação» da vida, pois os dados que são recolhidos pelas diversas plataformas vão sendo um importantíssimo segmento de negócio e começam a revelar-se como fundamentais para as grandes decisões, quer a nível individual, quer a nível social. E por detrás disto tudo está a presença constante e crescente da Inteligência Artificial (IA), tomando, pouco a pouco, conta de todo o espaço, não só ao nível da informação e partilha de dados (outra vez os dados) mas também ao nível da decisão, uma vez que, em muitos setores, mesmo nos mais complexos e com mais impacto na vida humana, as decisões são também suportadas e tomadas a partir desses processos, fazendo-nos cair na conta de consequências perigosas para o exercício da cidadania e para as democracias.
Daqui resultam, também para as comunidades religiosas múltiplos desafios, pois, igualmente a este nível, surgem novas mediações baseadas em telas e algoritmos, promovendo novos lugares para viver e pensar as religiões.
Não vou aqui dar conta da complexidade desta questão, pois isso exigiria conhecimentos que não tenho e também não é este o espaço adequado para o fazer, mas como a IA, nas suas múltiplas concretizações, esta aí e é já uma realidade à qual ninguém pode ficar imune (para o bem e para o mal), não posso deixar de partilhar a interrogação, também escutada no Simpósio, de como lidar com esta realidade?
Olhar para a IA como se fosse um monstro apocalíptico que invadiu a terra e do qual nos devemos proteger, acaba por não resolver nada. O caminho mais acertado para lidar com esta realidade e com os desafios dela decorrente não parece ser a fuga, ou o combate tendo em vista a sua eliminação. Há também muita coisa positiva neste complexo mundo, muita coisa que pode ajudar a viver melhor e a promover a dignidade humana. O caminho passa, pois, pela informação e pela formação.
Em última instância até, as perguntas que devemos fazer neste contexto, são perguntas que nos apontam para o humano. Que humanidade estamos a ser? O que é o especificamente humano? Neste contexto, todos os debates à volta da IA podem até ser uma grande oportunidade para nos colocarmos estas questões, ajudando-nos a aprofundar o que entendemos por condição humana, ajudando-nos a pensar que humanidade queremos ser.
Ao fazermos as perguntas deste modo, talvez possamos perceber a importância que a dimensão ética e a dimensão religiosa, continuam hoje a ter. A redescoberta da necessidade de cuidarmos uns dos outros, procurando e promovendo o bem comum é, certamente, lugar privilegiado para lidarmos com os desafios que enfrentamos como humanidade. Aqui talvez possa surgir uma oportunidade, saibamos nós agarrá-la, para nos centrarmos na promoção do que é o especificamente humano. Esse também pode ser, ainda que possa parecer paradoxal, o grande contributo que as religiões são hoje chamadas a dar na construção do mundo: promover o humano, o especificamente humano.
Juan Ambrosio
juanamb@ucp.pt
Artigo da edição de fevereiro de 2025 do Jornal da Família
Imagem ilustrativa gerada por IA